sexta-feira, 20 de julho de 2012

De repente


De repente
           

            A caminhada foi longa e o sol esquentou bastante. Clarice abriu a sombrinha. O cesto com as roupas pesava. O suor escorria pelo rosto e empapava-lhe a roupa.
            “Uma mulher não deve suar em público.” Pensou. Mas como não suar debaixo de um sol tão escaldante?
            Tomara um banho. Passara perfume. Onde estava o fresco aroma de lavanda? Há muito se fora. Clarice se sentia desconfortável.
            Entrou na casa de dona Efigênia. O velho portão do casarão dos Magalhães rangeu. Sempre fora imponente, não se parecia em nada com as casas simples do lugar. A pequena escada de pedras, a grande varanda que fazia volta por toda a casa. Era pintado de branco, com antigas portas e grandes janelas azuis, agora já um tanto desbotadas, mas ainda assim o casarão emanava uma certa dose de austeridade. Dona Duca, a empregada de tantos anos, olhou pela janela.
            _ Clarice? É “ocê”?_ Talvez a velha já não enxergasse tão bem. Gostava da velha mulata, sempre tão boa com as crianças.
            _ Sou eu, dona Duca._ Gritou Clarice, do portão, mas já do lado de dentro do grande quintal. _ Trouxe as costuras que dona Efigênia mandou pra mamãe fazer uns reparos.
            _ Pode entrar, “fia”.
            Clarice foi para a porta dos fundos. A porta da frente raramente era aberta. Apenas em dias de visitas muito ilustres. Clarice nunca passara por ela. Admirou as margaridas plantadas no jardim tão bem cuidado. Dona Efigênia amava as plantas.
            Dona Duca a recebeu pela porta da cozinha.
            _ Dona Efigênia esta no galinheiro._ Declarou a velha empregada. _ Foi dar uma olhada na criação. Senta um pouco e descansa. O sol tá muito quente.
            E estava mesmo. Clarice suava em bicas. A moça sentou-se num banco na cozinha.
            _Quer um refresco? Já almoçou? _ A velha perguntou.
            _ Já sim, senhora. _ Respondeu a moça um pouco constrangida.
            _ Toma o refresco, então. É de graviola.
            _ Não, obrigada.
            Clarice estava com a boca seca, mas não aceitava. O orgulho sempre vinha em primeiro lugar. Não gostava de aceitar o que era dos outros.
            _ Não quer um copo d’água?
            _ Aceito sim, senhora. _ Clarice disse.
            Água podia aceitar. “Água não se nega a ninguém.”. A mãe sempre dizia. Então água Clarice aceitava. Aceitava sim. Mas nunca pedia.
            Bebeu a água em grandes goles.
_ Quem está aí, Duca? _ Perguntou dona Efigênia, lá de fora.
_ É a Clarice de dona Amália.
Clarice, de dona Amália. Era engraçado aquilo. Como as pessoas pertenciam umas as outras. Clarice pertencia a sua mãe.
            _ Já trouxe as roupas, Clarice?_ A senhora perguntou enquanto entrava na cozinha.
            _ Sim. Mamãe pediu para que a senhora provasse. Trouxe os alfinetes para marcar as costuras.
            _ Está bem, filha. Vamos até o quarto.
            Clarice seguiu a senhora pelo corredor comprido. Poucas vezes entrara naquela casa. Podia lembrar do cheiro. Era o mesmo que sentia agora.
            Era engraçado como cada casa tinha o seu cheiro.Clarice conhecia o cheiro de cada uma delas. Uns bons, outros ruins, alguns apenas diferentes. Como o cheiro da casa de dona Efigênia. A única casa que Clarice não conhecia o cheiro era a sua. Por muito tempo achara que sua casa não tinha cheiro. Mas era certo que tinha. Apenas seus moradores não conseguiam distinguir.Um dia, Niltinho, seu sobrinho, dissera: “Cheiro da casa da vovó!” Clarice gostaria muito de saber que cheiro era aquele.
            Dona Efigênia abriu a porta e a fechou atrás de Clarice. Estava na hora da prova. A moça passou os olhos pelo aposento. A cama alta e antiga. A prateleira cheia de perfumes, bibelôs e porta retratos. Clarice deu com um retrato de Olavinho. Fazia muito tempo que não o via.
            Costumava vir sempre à casa da avó, em dias de sábados e domingos. Olavinho era tão bonito. Seu nome era música para os ouvidos de Clarice.
            O menino nunca lhe dera a mínima atenção. Garoto rico, bonito. Menino da cidade. Era claro, de cabelos escuros. Sua imagem jamais saíra da cabeça de Clarice. Mas não conseguia lembrar de quando o vira pela última vez.
            Lembrava de Olavinho quando criança, brincando na rua com os demais meninos. Lembrava de uma vez em que a tia o levara a uma festa de uma criança da vizinhança. Olavinho estava sozinho, um pouco deslocado, já entrando na adolescência. Daí pra frente não se lembrava se o vira outra vez. Tantos anos se passaram.
            _ Senta, filha. _  Disse dona Efigênia. _ Tua mãe tá boa?
            _ Está sim, senhora. Mandou que eu marcasse as costuras, se não estiver do seu gosto.
            _ Vai ficar no ofício de tua mãe? Costura também?
            Clarice corou. Não nascera para aquilo. Estar servindo em casa dos outros. Arrumando mesas, costurando. Não fazia diferença.
Queria ter sua própria casa. Sair da subserviência. Queria ter sua mesa de jantar. Sua casa com flores na varanda. Seus retratos na parede. Um marido que ganhasse o suficiente para que ela não precisasse servir nas casas dos outros. Mas já estava com quase vinte e cinco anos e nada.
            E se ficasse para tia? Não contara nunca com isso. Mas essas coisas aconteciam. Então tinha que ter o seu próprio ofício. Mulheres que não tem marido, tem que se sustentar. Quando jovem queria ser professora, mas os pais não tinham condições de mandarem-na para o curso normal.
            Ser professora era melhor do que ser costureira ou servir nas casas dos outros. Mas entre ser costureira e servir, preferia a primeira opção. Era orgulhosa demais para servir numa casa.
            E se ficasse para tia? Ia ter que ser uma agregada. Em casa de um parente ou até mesmo uma pessoa de fora. Isso Clarice não podia suportar. Havia de ser costureira. Era melhor do que morrer de fome ou viver encostada na casa dos outros. Dependendo da caridade alheia.
            _ Ajudo mamãe com algumas costuras. Não tinha pensado em seguir o ofício. Mas é bom que toda mulher saiba costurar, bordar, lavar, passar e cozinhar, se quiser ser uma boa dona de casa. Mas posso me tornar uma costureira também. Deus é quem sabe.
            As costuras caíram bem em dona Efigênia. Não precisou de nenhum reparo. A senhora lhe entregou o dinheiro e Clarice o guardou depressa. Como se lhe queimasse a mão. Tinha vergonha de receber dinheiro dos outros.
            O dinheiro sempre fora um problema para Clarice. Sabia que as coisas eram apertadas em casa. Enquanto Lourdes e Laurinha viviam pedindo dinheiro aos pais para comprarem fitas, rendas e doces, Clarice nunca pedia nada. Recebia o que lhe vinha às mãos e agradecia. Mas nunca pedia nada.
Lourdes, a mais velha, já se casara. Laurinha, a mais nova que ela, casara-se também. Só ficara ela e Marcos em casa. Mas Marcos era o caçula. Em breve casava também e ela ficaria só com os pais em casa.
Despediu-se de dona Efigênia. Ao passar pela cozinha, deu com Mário Sérgio, que almoçava, antes de voltar para a mercearia. Já era tão tarde, pobrezinho.
A vida de Mário Sérgio também não era muito fácil. Perdera os pais muito cedo e fora morar com a avó.
Dona Efigênia tinha uma mercearia, que o marido lhe deixara e que agora estava por conta de Mário Sérgio. Mas não era seu próprio negócio, era negócio da família. E dona Efigênia tinha tantos filhos, tantos netos. Todos tiravam bocados da mercearia, mas só Mário Sérgio trabalhava.
Apenas a família de Olavinho tinha posses. O pai de Olavinho era um homem rico. Era o que todo mundo comentava. Clarice não se lembrava do rosto do homem ou qualquer coisa que estivesse ligada a sua aparência. Só se lembrava que ele tinha posses e mais nada.
_ Boa tarde, Mário Sérgio.
_ Boa tarde, Clarice. Está servida?
_ Não, obrigada. Já almocei.
Mário Sérgio e ela tinham estudado juntos no Grupo Escolar. Ele, um pouco superior, já que era neto da dona da mercearia. Morador do casarão dos Magalhães. Isto lhe confiava algum status. Ela, apenas a filha da costureira. Não foram amigos. Apenas colegas de classe. Mário Sérgio, como os outros meninos, não lhe tinha muito apreço. Mas não eram inimigos. 
             O tempo passou e agora já eram adultos. Os adultos tem uma camada de polidez que não possuem as crianças e adolescentes. Agora, se cumprimentavam da maneira civilizada e em nada lembravam os tempos de meninos.
            Despediu-se do rapaz e rumou para casa. O sol castigava. Não lembrava de um verão tão quente. Como queria que caísse uma chuva.


            A bolsa estava pesada. Quantas roupas Anita mandara para sua mãe consertar? Não se cansava de tantas roupas? A moça a prendera um pouco para botar a conversa em dia. Anita tinha muito a dizer de si. Acabou saindo de lá mais tarde do que deveria. Anita lhe oferecera café com bolo que ela mesma preparara. Clarice não aceitou. Era muito difícil que Clarice aceitasse qualquer coisa de alguém.
            Continuou a caminhada. O caminho de volta parecia bem mais logo. Tinha fome. Estava cansada. Os minutos pareciam não passar. Como gostaria de estar em casa agora. Tomar um café quentinho, comer uns bolinhos de chuva que a mãe certamente preparara.
            A mãe, sempre tão boa. Fazendo todas as vontades de todo mundo. Um simples desejo, e se a mãe podia, realizava.”Uma mãe é pra cem filhos e cem filhos não é para uma mãe.”. Esse ditado se aplicava a sua. Movia terra e céus para abençoar sua cria. Mãe tão boa. Se um dia fosse mãe, queria ser como a sua. Forte, guerreira, lutadora.
            Será que teria a mesma força da mãe? Clarice julgava que não. Amava tanto a mãe. Devia dizer isso pra ela. Quando se ama uma pessoa, a gente diz. Não podemos deixar o tempo passar.
            Era tão agradecida à mãe. Por tê-la  criado com tanto carinho. Por ter sofrido tanto para criá-la junto com os irmãos. Clarice sabia disso. Reconhecia o valor da mãe.



Clarice sabia que não era das mais belas. Os meninos, além de não a elogiarem, ainda a depreciavam. Na verdade não eram só os meninos. Meninas, e adultos também,  faziam isto sem a menor cerimônia. Mas o tempo passou e Clarice já não se sentia tão feia. Agora era bonita. Era bonita? Não conseguia entender isso! Encontra-se com uma amiga do Grupo Escolar que não via há muito e a menina lhe dissera que ela não havia mudado nada. Como? Será que o padrão de beleza havia mudado? Ou será que os adultos eram mais dóceis do que adolescentes e crianças? Clarice não tinha respostas.
            Clarice queria tanto que tudo tivesse sido diferente. Queria ter mais dinheiro e muito mais beleza.
            Não queria seus amigos de volta. Queria esquecê-los. Não que eles tivessem sido ruins para ela. Ao contrário, foram ótimos. Mas a amizade dava trabalho. Tem que regar e podar. E quando eles traem, é muito mais dolorido.
            Quantas vezes Clarice tinha magoado seus amigos? Seus irmãos? Ela não queria magoar ninguém. Nunca! Queria ser prestativa, doce. Queria ser tudo de bom para todo mundo. Mas era tão difícil. Sabia que não era perfeita. Nunca seria.
            Clarice estava tão cansada. Tão desanimada. Sua cabeça pesava. Queria dormir. Esquecer, descansar. Qualquer coisa.
            Estava tão desanimada das pessoas. Parecia que ninguém gostava dela. Olímpio, seu primo, ficou triste. Clarice também estava triste por ele. Triste por todos eles. Não queria ir à festa. Ele planejara a festa se sua filha com tanto esmero, e Gina, a sua esposa, botara tudo a perder. Não estava para festas. Não se trata as pessoas como se elas fossem lixo. Isso era desleal.
            Às vezes Clarice se perguntava se o problema não era ela. Nós nos achamos pessoas muito boas, mas talvez não sejamos o que pensamos ser. Não quando quase todo mundo acha um jeito de nos dar uma rasteira.
            Clarice queria não ser tão sensível a este tipo de coisa. Queria não se sentir mal. Mas não conseguia. Dava uma vontade de brigar. Soltar os cachorros em cima. Ao mesmo tempo dava uma vontade de esquecer. Fazer de conta que esse tipo de pessoa não existe.
            Clarice acabou indo à festa. A mãe e o pai insistiram. Disseram que não ficava bem. Clarice cedeu. Não valia a pena ficar dando murro em ponta de faca.


                       
Ainda se sentia cansada, porém um pouco melhor. Hoje era o seu aniversário, estava completando vinte e cinco anos de idade. Sentia que de todos os aniversários, este era o que se sentia menos eufórica. Ela não se sentia eufórica, as pessoas não se sentiam eufóricas.
            Ninguém a abraçou e a beijou. Eles cantaram parabéns pra ela em volta da cama. Se alguém a beijou, não se lembrava, só sabia que estava sonolenta na hora.
            Clarice sabia que vinte e cinco anos só se fazia uma vez na vida, mas ela não conseguia se animar. Queria estar alegre, contentíssima, mas a euforia não vinha.
            Parabéns pra mim! Ela gostaria de dizer. Gostaria de receber um telegrama de Helena, sua prima. Talvez ela tenha se esquecido. Pelo menos a Joana, sua vizinha, se lembrou. De onde não se espera é que sai. Elas foram muito amigas quando mocinhas, mas agora estavam meio desligadas.
            Será que outros amigos iam lembrar? Parabéns atrasado não tem graça. Mas Laurinha, lhe deu um presente lindo que Clarice adorou, mesmo que Ana  não estivesse ali agora. O que importava é que ela havia se preocupado.
            Não sabia o por que, mas sempre que fazia aniversário tinha uma decepção e uma alegria. Lembrou de um aniversário de quando ainda estava na escola. Tinha sido péssimo no colégio, mas em casa teve uma bela festa. Isso foi o máximo!
            Clarice queria que alguém se lembrasse,mas na verdade, não tinha nem ao menos ânimo para se arrumar. Em todo caso, o dia ainda não tinha acabado. Talvez ainda tivesse uma surpresa agradável.


            Clarice pediu para a mãe lhe fazer um bolo. A mãe fez e ela cobriu com um pudim de chocolate. De noite se arrumou e ela, o pai, a mãe e o irmão cantaram parabéns e partiram o bolo. Assim o seu aniversário se animou um pouquinho. Clarice achava que era indispensável um bolo no seu aniversário.
            Depois ouviu as crianças brincando de roda na rua. Lembrou de seus tempos de menina e adolescente também. Foi no portão para ver. Rosinha estava com as crianças. Já de namoro e ainda brincava de roda. Deu  vontade de brincar também. Uma mulher de vinte três anos! Que importava, hoje era seu aniversário, podia fazer o que quisesse, até brincar de roda.
            Brincou pra valer. Divertiu-se. Sempre que fazia aniversário tinha uma decepção e uma alegria. Brincar de roda foi sua alegria.


            Que felicidade! Dias depois recebeu uma carta de sua prima Catarina. Não podia ser melhor, pois ela havia ficado triste por não ter recebido nenhuma felicitação de Helena. Clarice achava que ela havia a esquecido. Em compensação, a carta de Catarina foi ótima.




Clarice foi fazer umas compras na mercearia e Mário Sérgio lhe atendeu. Ele estava tão lindo! Clarice achava o Olavinho tão bonito e o Mario Sérgio sem graça. Mas agora, o Mário Sérgio estava um broto e o Olavinho tinha mudado. Vira uma foto recente sua.
            Como o mundo dava voltas. Se Clarice tivesse que escolher entre os dois primos, certamente escolheria o Mário Sérgio. Ela estudara tantos anos com ele. Mas também, não tinha uma relação muito boa com os meninos de sua classe. Eles a achavam feia e não tinham nenhum problema em expressar isso. Só tivera paz quando entrara na adolescência.Mesmo assim, estava longe de ser o que era agora. O que tinha de diferente agora? Não sabia dizer! Tudo mudara desde que ganhara os contornos de mulher. 
            Era certo que Clarice ainda não conseguia dominar a relação homem/mulher. Sabia que era uma ótima amiga e uma péssima namorada. Mas ninguém mais andava jogando em sua cara, e o tempo todo, que ela era feia. Isso era difícil para qualquer ser humano agüentar, o que dirá para uma menina.
            Clarice ainda não podia acreditar que era bonita, mas sabia que alguma coisa devia ter mudado. Quando alguém dizia que era bonita, ficava feliz e prontamente agradecia.
            Se tivesse um pouco mais de dinheiro, daria para se cuidar mais. Parece que a pobreza atraía a feiúra. O dinheiro abre portas. A beleza abre portas. Mas parece que a pobreza atrai a feiúra. Clarice não era cega. Sabia que as pessoas eram atraídas pelo dinheiro e principalmente pela beleza. Não era culpa delas. Parecia ser uma coisa de seleção natural.
            Conforme o dinheiro vinha, vinha a beleza também. Talvez suas teorias tivessem alguma base. Não podia saber. Mas sabia que as duas coisas eram difíceis. Não ter dinheiro e não ter beleza. Mas parecia que a falta de dinheiro não doía tanto quanto a falta de beleza. E quando alguém te diz: “Você é feio!”. Vai doer e vai calar fundo. E ainda que o tempo apague. Uma manchinha sempre vai ficar em você.
            Não sabia por que estava pensando naquelas coisas. Estava com saudades. Saudades de um tempo que não vivera. Amor de menina.
            Olhou para o horizonte.  Céu com nuvens que formavam figuras que Clarice achava parecidas com sorvetes. Sorvetes sem gosto. Sorvetes com gosto de água.
            Quando era mocinha, apaixonara-se por um rapaz. Onde estaria ele agora?
            O tempo passa e as coisas mudam, como as nuvens no céu formavam novas figuras. Estava com saudades dele agora ou estava com saudade dela mesma. Num tempo onde o riso vinha mais fácil. Um tempo em que a juventude florescia. Assim como Olavinho, ele não correspondera a seu amor. A diferença era que Olavinho lhe tinha indiferença. Agora, ou sempre, não era nada em sua mente. Já Luiz, o outro rapaz, lhe dedicava ao menos uma amizade.
            Luiz não ignorava os sentimentos de Clarice, mas não lhe retribuía da mesma forma. Apenas lhe devotava um carinho e atenção que Clarice nunca recebera de nenhum outro antes. Talvez fosse por isso que estivesse com saudade dele agora.
            O céu continuava azul. No entanto, algumas nuvens já estavam cinzas, anunciando chuva pela qual Clarice ansiava agora.
            Onde estaria Luiz? Por que estava tão melancólica? Por que tanta saudade de Luiz? Ou seria saudade dela?


            Colocou umas roupas para quarar. Gostava de ter suas roupas sempre clarinhas. Passara algumas também. Que vontade de comprar roupas novas. Às vezes tinha uma vontade de ter roupas novinhas, estalando de novas. Cheias de detalhes. Mas eram apenas sonhos. A realidade era bem diferente. Como investir em roupas novas se precisava de tantas outras coisas?
            Achava que mesmo que fosse rica, não desperdiçaria seu dinheiro com futilidades.
            A trança se desfizera e o cabelo caía no rosto, atrapalhando-lhe a vista. Que vontade tinha de tomar um banho no córrego que passava no final da rua. Mas já não era mais uma menina. Não caía bem para uma moça andar com as roupas molhadas pela rua.
            Fechou os olhos e se imaginou ainda nos tempos de menina. Subindo em árvores, tomando banho no córrego. Brincando de bonecas com as irmãs. Onde estariam todos agora?
            O tempo corria vertiginosamente. As pessoas entravam e saíam de sua vida. Ainda conversava com algumas amigas do tempo de infância e adolescência, mas não tinha nenhuma amiga de outrora. Começava a se sentir só.
            E se ficasse para tia? Não podia admitir. Era vergonha demais para uma mulher. Como uma laranja murcha, que sobra no final da feira. Precisava casar-se já. Mas com quem? Todos haviam se casado ou estavam prestes a isso.
            _ Clarice. _ A mãe chamou.
            _ Que foi, mãe?
            _ Já te chamei duas vezes. Está no mundo da lua?
            _ São cismas, mãe.
            _ Cisma de quê?
            _ De nada. O que foi?
            _ O açúcar acabou. Busca na venda pra mãe?
            _ Sim, senhora. Posso tomar um banho antes. Estou suada.
            _ Vai, filha.
            Tomou um banho de um susto e se vestiu a primeira roupa que viu. A mãe tinha pressa.
            Chegou na venda. Mário Sérgio estava no balcão.
            _ Boa tarde, Mário Sérgio.
_ Boa tarde, Clarice.
_ Um quilo de açúcar, por favor. Põe na conta.
O rapaz parecia cansado. Clarice sorriu para ele.
_ Cansado? _ Clarice perguntou.
 Mário Sérgio fez uma cara de menino.
_ Quero ir pra casa. _ Disse como se fosse uma criança.
Era isso! Por que não tinha pensado nisso antes? Não era pobre, nem rico. Não estava abaixo dela, nem acima. Era jovem, forte, bonito. Homem trabalhador. Havia de se casar com  Mário Sérgio!  Não era apaixonada por ele. Mas já não era indiferente. Não o achara lindo outro dia? Já era um bom começo. Não estava apaixonada. E daí?
O amor vem como tempo. O grande problema era que Mário Sérgio agora a tratava com educação, sorria para ela. Coisa mais de comerciante do que de rapaz. Decididamente Mário Sérgio não lhe devotava nenhum interesse em especial. Mas ela podia mudar isso.
Deu um sorriso pra Mário Sérgio e despediu-se. Um casamento seria sua próxima empreitada. E  Mário Sérgio era o escolhido. “ Se não tem tu, vai tu mesmo.”  Que nenhuma princesinha escutasse isso. Não podia ficar em casa esperando envelhecer, até que ficasse no caritó. Ainda era moça, bonita. Podia dar um jeito em sua vida.



            Clarice entrou na mercearia e Mário Sérgio a cumprimento e não houve nada de especial. Os homens são uns tolos. Não valia a pena mesmo. O que Clarice estava falando? O que ela queria com o Mário Sérgio? Devia estar desesperada. Mario Sérgio era apenas um antigo colega de classe e nada mais. Era melhor não pensar mais nisso.
            Não ficava bem para ela meter-se em maus lençóis. Aquela coisa de romances não era para ela e muito menos para Mário Sérgio. Não ficava bem para ele. Amigos no Grupo Escolar. Na rua, não podia se dizer que eram da mesma turma. Mas alguma vezes chegaram até a brincar em grupo. Meninos gostavam de pipas e bolas de gude. Brincadeiras das quais as meninas sempre eram barradas. Meninas gostavam de brincar de casinha e escolinha e nestas brincadeiras os meninos não eram incluídos. Mas havia aquelas brincadeiras como bandeirnha, queimada e piques. Nessas todos podiam brincar.

            O dia estava frio e insípido. Saíra da cama. Tinha tantas coisas para resolver e não resolvera nada. Sentia uma falta de ânimo. Sabia que tinha que reagir, mas não conseguia. Não gostava de estar naquela situação. Situação de gente fraca que não tem ânimo nem mesmo para cuidar si.
Como gostaria que o sol abrisse e pudesse sair caminhando pela rua. Que falta faziam as irmãs. Do tempo que dormiam todas juntas no mesmo quarto. Ela e Laurinha sempre dormiam juntas. A menina não desgrudava de Clarice nem por um minuto durante o sono. Várias vezes Clarice acordava durante a noite para cobrir Laurinha.
Não gostava de dormir com Ana, que tinha o sono muito agitado. Ana a descobria, colocava o pé por cima dela. Dormia com Laurinha, um pouquinho mais calma. Mas calma mesmo, sempre fora Clarice. Sempre quieta, durante o sono ou acordada. Seria por isso que sobrara? Não demorava muito e o irmão também se casava e então só sobraria Clarice. E a casa ficaria cada vez mais vazia.
Teve vontade de dormir para que o tempo passasse mais depressa. Não estava em conformidade com aquele dia. Estava muito desanimada.  Lembrou-se do dia em que o pai da Rejane faleceu. Achou que aquilo era tão esquisito. Era um homem ainda novo. Os primos quiseram alegra-la. As demais crianças da rua também. Tudo parecia muito forçado. Não havia alegria naquela brincadeira. Resolveram brincar de comidinha. Todos, meninos e meninas. Aquilo não era muito comum. Estavam mesmo querendo agradar Rejane. Clarice preparou uma salada que lhe pareceu de bom aspecto, já que era feita de verdura de verdade e não das costumeiras folhas e barro, que consistiam os “ingredientes” das comidas que preparavam.
            Quando provou a salada, ficou desapontada. O gosto estava horrível. Marcos, um primo de Rejane tinha colocado uma quantidade soberba de adoçante. Ele riu e Clarice ficou muito irritada. Também estudavam juntos no Grupo Escolar, mas não eram exatamente amigos. Não que a irritasse. Marcos não era do tipo que se incomodava em chatear as meninas. Apenas não eram muito amigos e ponto. Mas se irritou muito com o menino naquele dia.
            Não teria se importado muito se soubesse que poucos anos mais tarde Marcos também morreria. Bem mais cedo que o tio. Não chegara a constituir família. Morrera pouco tempo depois de sair da adolescência.
            Não morrera de um trágico acidente, como costumam ser ceifadas de repente as jovens vidas. Uma doença grave o acometera e Clarice nem teve tempo de se despedir. Nem mesmo comparecera ao seu enterro.
            Mas por que pensar nisso agora? Ela estava viva. Não ia querer morrer cedo como Marcos. Queria viver, fazer grandes coisas. Não aceitava ter uma vida comum, como qualquer outra pessoa. Queria mais da vida. Não queria que sua vida fosse um dia cinzento e inanimado como o de hoje. Queria sol, queria vida. Queria que sua vida fosse um lindo jardim perfumado.
            Um jardim perfumado? Sim, era isso que queria que fosse sua vida. Fechou os olhos. Imaginou-se numa ponte sobre um lago com várias flores coloridas e perfumadas. Num tempo que fosse ameno. Nem quente, nem frio. Um termo morno e gostoso. Daqueles que se tem vontade que dure para sempre. Não queria pensar em morte agora. Queria apenas viver.
 


            Algumas pessoas metem-se na vida dos outros por tudo ou por nada. Só a opinião deles é que conta. São tão senhoras de si que prontamente se põem a dar palpites na vida dos outros como se só elas fossem donas da verdade. Clarice tinha medo de ser assim. Sempre fora tão orgulhosa. Será que se achava melhor do que as outras pessoas?
            Estava irritada com seu bordado. Estava um emaranhado tal que mais parecia uma teia de aranha muito colorida. Que vontade de o atirar longe, mas Clarice não gostava desse tipo de arroubo, Coisa de moça fricoteira e isso não podia admitir.
            Detestava fricotes. Moças que desmaiam sem motivo aparente ou que ficam prostradas como se o céu estivesse caindo sobre suas cabeças. Isso não era coisa pra ela. Bastava um sol mais forte, que lá estava a mocinha a desmaiar. Clarice se perguntava o quanto tinha de verdade naquele padecimento.
            O calor estava insuportável O tempo abafado. A chuva que caíra na noite anterior em nada amainara aquele calor todo. 
           
           







A morte crucia, verdadeira, sem pena e sem dó, mais uma vez . Só que dessa vez era mais perto. Ela acabava de levar o avô de Clarice Quando recebeu a notícia não chorou. Insensível? Não sabia dizer. Sabia que a morte não era para sempre e que se veriam no Céu. Seu avô não tinha morrido, o Senhor o tomou pra si.
Adeus, vovô! Adeus!
            A tarde estava findando e Clarice se preparava para ver o corpo de seu avô. Ele era bem velhinho e já estava ruinzinho. Ficara de cama um bom tempo. Fora internado no hospital. Seu avozinho estava morto. Clarice estava com vontade de chorar. E por que não chorava? Ele era seu último avô.
            Sempre velho, mas com uma cabeça boa. Às vezes fazia algumas rabugices, mas tinha a cabeça boa. Lembrou-se da avó que morrera quando ela era criança. Agora não tinha mais avós.
            Queria dar adeus a seu avô. Ainda não o vira morto, mas sabia que agora ele estava bem. Mas Clarice não deixava de sofrer com sua morte. Seu avô não morreu de repente, por isso ela não teve um impacto com a sua morte, mas sabia que agora estava tudo acabado. Agora não mais o veria. Veria apenas o seu corpo.
            Clarice foi ver o avô. Seu avô dentro de um caixão. Só aí suas lágrimas vieram. Doía ver no caixão o seu próprio avô. Sabia que nunca mais se veriam na terra. No outro dia iriam enterra-lo.
            No outro dia deu seu último adeus ao avô e suas lágrimas vieram novamente, pois gostava do avô, o seu único avô, que agora Clarice via baixar à campa fria. Adeus, avozinho.


            Acordara com o sol entrando pela janela. A garganta estava seca. Sonhara com seu casamento. Estranho sonho. O penteado nunca dava certo. Não fazia idéia de quem era o noivo. Não era uma roupa de casamento.  Lembrou-se então do sonho que tivera antes. Sonhara com Mário Sérgio. Nunca havia sonhado com ele antes. Sonhara que tinham se beijado. E ela tinha iniciado o beijo. Que horror! Mas no sonho eles haviam iniciado um namoro, por escolha de Mário Sérgio. Seria um bom presságio? Será que levaria a cabo o seu casamento? Será que poderia se apaixonar pó Mário Sérgio? E ele?Poderia se apaixonar por ela?
            Era hora de sair da cama e cuidar da vida. Se queria Mário Sérgio, tinha que se arrumar melhor.Não podia aparecer na venda como costumava ir todos as vezes em que era preciso.
            Mas será que Mário Sérgio merecia que ela se arrumasse para ele? Ainda não estava neste estágio. Não estava apaixonada por ele. Não deitava seus pensamentos em seu favor. Só queria casar-se e mais nada. E Mário Sérgio parecia a pessoa ideal. Ideal? O homem ideal não existia. Mário Sérgio era  a pessoa certa.
            Não teve nada o que comprar durante aquele dia. Que importava? Não podia ficar se desmanchando de amores por ele. Nem tinha cabimento. 




            De noite foi para a pracinha com Rosinha, filha de dona Iná, que estava de namoricos com o Adalto da farmácia. Que graça tinha? Segurar velas, como uma tia solteirona. Que dona Iná segurasse sua cabritinha, que ela tinha mais o que fazer. Desta vez ia, mas nem mais uma.
            A praça estava cheia. As moças iam e vinham com sorrisinhos melosos. Os rapazes ficavam em grupos e também sorriam. Clarice já pertencera  a um grupo assim. Mas isso fora há muito tempo.
            Na praça também havia gente mais velha, que tomava conta de gente bem mais nova. Outros estavam lá apenas para tomar a fresca da noite. Rosinha encontrou-se com Adalto. Sentaram-se os três num banco da praça. Clarice morreu de vergonha. Uma tia velha, era o que parecia agora. Não queria ficar ali, atrapalhando a conversa de dois pombinhos apaixonados.
            Passou os olhos pela praça de divisou bem perto um grupo de conhecidos seus, no qual estava Mário Sérgio. Então o senhor Mário Sérgio também era freqüentador da pracinha? Quando eram mais novos ainda vá lá. Mas agora? Será que ele estava interessado em alguma moça? Ou quem sabe alguma moça estava interessada nele? Não tinha sido ele o escolhido dela? Não fora o que sobrara? E se alguém viesse e lhe passasse a perna?
            Não podia deixar de jeito algum. Ainda não estava apaixonada por ele. Mas isso era questão de tempo. Gostava de seu porte. Não era o que podia se chamar de muito lindo, mas tinha um belo sorriso. Ainda tinha um que de menino. Ao contrário dela, era bem alto. Mas Clarice gostava de homens altos. Sentou-se próxima de Mário Sergio, num grupo de conhecidos que se formava. Composto, é claro, de pessoas mais velhas que estavam lá para tomar conta dos mais jovens que estavam lá de namoricos.
            Mário Sérgio não lhe deu a mínima, mas com os dois era sempre assim. Por vezes se tratavam como desconhecidos. Por outras, se cumprimentavam como amigos e por outro até entabulavam uma agradável conversa, como se fossem ótimos amigos. No entanto, Mário Sérgio nunca lhe devotara a mínima intenção de algo mais. Quanto a ela, estava decidida. Casava-se com ele. “Dos males o menor”! Não ficava para tia. Não mesmo.
            Ele foi cumprimentar uma conhecida e o fez de maneira tão efusiva que Clarice sentiu ciúmes. Ciúmes de Mário Sérgio? É, podia dizer que sim. Se ele era sua próxima e definitiva conquista, então não devia estar de sorrisos e abraços com ninguém. A ela, ele nunca cumprimentava assim. Mas ainda pode ver Mário Sérgio lhe pedindo um favor. Respirou tranqüila. As pessoas são muito efusivas quando querem algo em troca. Mário Sérgio não era diferente.
Ele voltou logo para o grupo e estava mais animado. Decerto amiga lhe prestaria o favor. Falaram amenidades. Sorriram todos juntos, mas nada em especial. Clarice tinha que dar um jeito naquela situação. Mas não se encontrava com disposição de correr atrás de Mário  Sérgio.Não fizera isso com os mais bonitos, os que gostara mais e os que tinham dinheiro. Não faria isso com Mário Sérgio tampouco. Se não fosse Mário Sérgio, seria outro. Pra tia é que não ficava.
Já estava tarde e começaram a despedir-se. Descuidara-se de Rosinha e Adalto. Bela vela era ela. Que dona Iná não soubesse. Fora para a praça para olhar a pequena e lá estava ela, entretida com o seu quase namoro. Ainda que Mário Sérgio não soubesse de nada. Teve vontade de rir. Os homens são uns tolos. O rapaz não sabia o que o esperava.
_ Tenho que achar Rosinha. _ Disse Clarice.
_ Tenho que fechar a mercearia. _ Disse Mário Sérgio. _ Deixei com Chiquinho por meia hora, mas vou ficar mais um minuto. _ E sorriu.
Gostava quando ele sorria, era o seu maior encanto em Mário Sérgio.
_ Mas tenho que achar Rosinha. _ Clarice se levantou. Dera muita canja para a menina. Que dona Iná não soubesse.
Os outros se levantaram e começaram a ir embora. Clarice e Mário Sérgio também o fizeram.
_ Vou tomar um café._ Ele disse.
_ O por que não tomou na meia hora que Chiquinho te deu? _ Clarice perguntou. _ Está ficando muito abusado.
Então ele sorriu para ela. Para ela e só ela. Não importava que fosse um sorriso de amigo. Mário Sérgio sorrira para ela.    
A noite não fora em vão. Logo achou Rosinha, que parecia não ter arredado o pé de onde a deixara com Adalto. Ainda bem que era calma a pequena. Não fosse isso, por agora estaria em maus lençóis. Da próxima vez iria prestar mais atenção na pequena. Da próxima vez? Não fora ela quem dissera que não mais se prestaria a este papel? Mas tudo bem. Até que tinha sido bem proveitoso o passeio que dera. Bom para ela e bom para Rosinha. Matara dois coelhos com uma cajadada só.





Acordou bem cedo. Estava apreensiva. Tinha medo. Medo de quê? Por que o medo ás vezes  assaltava o seu coração?
Ansiava por tantas coisas. Penteou  os cabelos. Então não era uma moça bonita? Por que Mário Sérgio não a notava? Era diferente dos outros rapazes. Era seu amigo. Conversava com ela, mas em nada demonstrava que sentisse algo por ela. Nem que fosse uma simples admiração.
Podia desistir de Mário Sérgio. É certo. Desistiria dele. Não o amava. Nunca estivera apaixonada por ele. Decidira-se casar e ponto. Escolhera o primeiro que aparecera em sua frente.
Tantos outros rapazes lhe tinham melhor apreço. Eram galantes com ela. É certo que  Mário Sérgio era jovem, forte. Bonito até. Era simpático com ela. Mas nada mais. Além disso, o que tinha de seu?
Morava desde criança, na casa da avó. Estudara ali mesmo no Grupo Escolar. Não se tornara nenhum doutor e desde muito cedo assumira a mercearia da avó. Mas o que era  Mário Sérgio mais do que os outros? Nada.
É certo que trabalhava sem descanso. Era homem de confiança. Não era de estar em curriolas de rapazes. Sempre firme no trabalho. Mas não lutava pelo que era seu. Poderia ter sua própria mercearia. “O olho do dono é que engorda o porco.” Se tivesse seu próprio negócio, já teria muito mais de seu.
Talvez  Mário Sérgio não fosse mesmo homem para ela. Não podia deixar seu destino nas mãos de alguém tão pouco ambicioso.  Mas se Mário Sérgio fosse mais do que era, ela é quem não serviria para ele.
O que tinha para oferecer?  Preocupava-se em ser prendada. Aprendera a cuidar da casa, cozinhar, passar, engomar, bordar e costurar. E o que mais? Possuía algum dote? Vinha de alguma família ilustre?
Até parecia que os jovens da cidade estavam fazendo fila para casarem com ela. Pois sim! Um pouco mais e ficaria para tia. Já estava pegando os encargos do ofício. Não fosse isso, dona Iná não lhe confiaria Rosinha. E nem pra isso servia. Fora para tomar conta da moça e entreterá-se com Mário Sérgio. Logo ele que não lhe dava a mínima.
Por que fixara-se em  Mário Sérgio? Talvez porque não houvesse muita opção. “Em terra de cego, quem tem um olho é rei”.
Logo após o almoço a mãe lhe pediu que fosse buscar umas fazendas na casa de dona Efigênia. A senhora queria encomendar um vestido para a neta.

Na volta encontrou Mário Sérgio que chegava para o almoço. Sempre tão tarde, pobrezinho. Uma coisa não podia negar, Mário Sérgio tinha bom coração. Sempre deixava que Chiquinho almoçasse primeiro. Era por isso que sempre almoçava tarde. Logo ele que sempre acordava tão cedo.
Estava de camisa preta e óculos escuros. Devia estar se sentindo o tal, porque parou no início da escada e ficou olhando para Clarice. Será que olhava para Clarice mesmo?
Lembrou-se de uma vez que Neuza, uma amiga de classe chegou bem feliz dizendo que um rapaz olhara fixamente pra ela. Disse que era muito bonito, estava bem vestido e estava de óculos escuros.
_ O problema dos óculos escuros é que a gente nunca sabe para onde a pessoa está olhando. _ Disse Vilma categoricamente.
Neuza ficou vermelha feito camarão e mudou de assunto. Clarice teve vontade de defender a moça, mas não queria se meter, as duas eram muito amigas. Mas que espécie de amizade era aquela? Lembrava-se de um dia em que estavam fazendo um trabalho escolar na casa de Anita e as duas foram preparar o lanche, deixando Neuza e Vilma encarregadas de dar seguimento ao trabalho. Lembrava-se de ter ido buscar algo que esquecera na sala e ouviu parte da conversa das duas que estavam na varanda.
Falavam sobre beleza e Vilma disse para Neuza se ela topava perguntar qual era a mais bonita. Neuza não topou e Vilma vez cara de quem saíra vitoriosa. Numa discussão daquele tipo, Neuza sempre ficara por baixo. Clarice correu para a cozinha com medo que elas a vissem. Numa pergunta como aquela, ficaria numa saia justa. Encontrou Anita entretida com o lanche. Era muito fácil Vilma fazer um tipo de coisa como essa com Neuza. Queria ver se ela teria coragem de fazer o mesmo tira-teima com Anita. Isso não faria mesmo. Anita era um tipo de beleza que não dava pra ninguém competir. De modo que Clarice estava lá, com Mário Sérgio na frente dela, de óculos escuros, olhando para Clarice ou para os passarinhos. Quem podia saber. Ainda bem que Vilma não estava lá agora.
_ O que foi? _ Clarice perguntou. Se estava olhando pra ela, teria de responder o por que. Tinha o meio sorrido no rosto e uma cara de quem está se achando. Clarice não queria dar confiança para ele.Ele tinha que decidir se achava Clarice uma planta ou uma mulher. Em cima do muro é que não podia ficar.
_ Estou esperando criar ânimo.
_ Força. _ Clarice disse sem lhe dar nem ao menos um sorriso. _ Estava cansada de dar murros em ponta de faca. _ Boa tarde e bom serviço, Mário Sérgio. _ Disse enquanto acabava de descer as escadas.
_ Boa tarde, Clarice.
_ Ela fechou o portão atrás de si e não olhou para trás. Não era mais uma mocinha. Não podia se dar ao luxo de ficar sonhando com o Príncipe Encantado. 





A mãe lhe chamou logo cedo. Não tinha vontade de sair da cama. Ao contrário do dia anterior, que fora quente e abafado. Abafado demais para o gosto de Clarice. O dia de hoje amanhecera bem feio. Ana tinha deixado Niltinho com a mãe. O menino acabara dormindo com Clarice. Revirara a noite inteira. De madrugada Clarice acordou com a roupa encharcada de suor. Levantou-se e trocou de roupa. Que madrugada aquela. Não dormira bem.
_ Ande, Clarice._ A mãe chamou novamente_ Preciso de açúcar.
Por que a mãe não comprava tudo de uma vez? Por que tinha de ir centenas de vezes na mercearia, no armarinho e na farmácia? Queria ficar o dia inteiro naquela cama.  


O dia estava frio. Que tempo é este que vive mudando? Sentia os pés gelados. Não gostava de lavar roupas em dias chuvosos. Queria estar na cama agora. Às vezes pensava que sua vida não caminhara como ela queria. Não que estivesse infeliz, mas será que as pessoas pensavam que ela era uma fracassada? Isso não podia admitir.
_ Clarice. _ A mãe chamou, tirando-a de seus pensamentos.
_ O que é, mãe?_ Perguntou Clarice.
_ Vai buscar essas  coisas na venda._ Disse a mãe lhe entregando um papel de embrulho meio amarrotado.
Leu a lista. Poucas coisas. Estava um pouco desanimada, mas foi trocar o vestido. Vai que Mário Sérgio repara.
Chegou lá e encontrou o Chiquinho no seu lugar.
_ Bom dia, Chiquinho._ Disse enquanto entregava a lista.
Não ia perguntar por Mário Sérgio. Não daria o braço a torcer. Não queria o seu nome em boca de Matilde
Voltou para casa. Trocara o vestido à toa. Mário Sérgio não a merecia mesmo. Sonhara com ele na noite anterior. Esquisito essa coisa de sonho. Costura sem parar e a roupa não ficava pronta.Desmanchava a costura, costurava e tudo ficava na e mesma. Levava a roupa para a prova, já era noite. Nada dava certo.
No sonho encontrava Mário Sérgio na rua e ele lhe oferecia uma carona na bicicleta em que fazia entregas para a mercearia. E ela aceitava. Que loucura. Jamais faria isso na realidade. Ele lhe levava em casa e quando Clarice estava pronta para beija-lo. O pai aparecia e estragava tudo. Sonho esquisito, aquele. Decididamente, Clarice tinha que parar de pensar em Mário Sérgio.
_ Clarice. _ Disse a mãe. _ A linha acabou, vai buscar no armarinho para mãe.
Acabara de voltar da mercearia. Tirara o vestido e não ia trocar de novo. Que Mário Sérgio fosse às favas. Não pensaria mais nele. “Antes que o mal cresça, corta-se lhe a cabeça.”
Passou pela porta da mercearia a Chiquinho a chamou:
_ Que foi?_ Perguntou espantada.
_ Esqueci de botar o sabão no embrulho. _  Falou o rapaz como quem pede desculpas.
Mário Sérgio estava arrumando a prateleira e não lhe dera a mínima. Também não ia se dar ao trabalho de falar com ele. Queria sair logo dali. O que dera nela para achar que Mário Sérgio seria um bom marido para ela? Não mesmo!
Não podia ficar nessa. Vai que um belo dia ele arranjava uma namorada. E ela, como ficava?
Com cara de tola. Era melhor desistir.
_ Vou comprar linha no armarinho da dona Filó. Na volta passo aqui. Está bem, Chiquinho?
_ Tudo bem. O sabão já está embrulhado.
Saiu logo da mercearia. Quem Mário Sérgio achava que era? Isso era coisa bem dele. Onde estava com a cabeça quando resolvera dar trela para Mário Sérgio? Logo ele? Não podia ter escolhido algo melhor? O que tinha Mário Sérgio para que ela devesse correr atrás dele? Estava para nascer o homem que a faria fazer isso.
Na calçada encontrou-se com Rosinha, filha de dona Iná. A moça queria ir à farmácia comprar álcool. Mas por que não comprara com Chiquinho, na mercearia? Era pra ver Adalto, na certa. Queria que Clarice fosse com ela. O que há de se fazer? Ela mesma não andara arrastando asas para Mário Sérgio? Rosinha, pelo menos, era correspondida. Não teve outro jeito. Teve que ir com a moça. Que Rosinha não fosse com muita sede ao pote. “Formiguinha quando quer se perder, cria asas.” A mãe falava sempre. Mas como dizer isso para Rosinha? “Se conselho fosse bom, ninguém dava, vendia.”
_ Vamos comigo ao armarinho. Rosinha?_ Perguntou Clarice.
_ Vamos! _ A mocinha respondeu._ Também quero comprar uma fita para os cabelos. Quero uma fita para combinar com aquele vestido que sua mãe está fazendo para mim. Está ficando bonito, Clarice?
_ Claro, Rosinha.
_ Acha que me cai bem?
_ Tudo te cai bem, Rosinha. _ Disse Clarice entre risos.
_ Está mangando de mim, Clarice? . Perguntou a mocinha com um muxoxo.
_ É claro que não, Rosinha!  _ Espantou-se Clarice. _ De onde tirou uma coisa dessas?
_ Mamãe diz que sou muito magra. Vive me dizendo para comer sempre mais.
_ Todas as mães dizem isso, Rosinha. Mamãe sempre me fala a mesma coisa.
_ Mas você não é magra, Clarice. Tem curvas! E que curvas! Podia ser manequim de revista.
_ Com esta altura, Rosinha! Tem graça! Mais fácil se fosse você. É alta e esguia. Ficava bem numa passarela.
_ Alta e esguia! Bonito jeito de se descrever um varapau.
Clarice caiu na gargalhada.
_ Deixe de bobagens, Rosinha. Quantas mulheres não dariam tudo para ter seu porte.
_ Só se fossem malucas, Clarice. Além do que, quem gosta de osso é cachorro. Homens gostam é de carne.
Clarice teve que rir, novamente. Era divertida a pequena. Não mentiu quando disse que tudo caia bem em Rosinha. Era a pura verdade. Sua mãe era costureira. Ela mesma dissera que tudo caia bem em Rosinha, que gostava de costurar para a mocinha.
_ Rosinha tem medidas de miss. _ Dissera-lhe a mãe um dia.
_ Mamãe disse que você tem medidas de miss, Rosinha.
_ Dona Amália gosta de mim, Clarice.
_ Deixe de bobagens e vamos logo para o armarinho. Não tenho todo o tempo do mundo, Rosinha.
Quando chegara lá, para sua surpresa, Mário Sérgio também estava.
Ele segurava um rato com um pedaço de pano.
_ Um rato! _ As duas gritaram em uníssono.
_ Calma, meninas! _ Disse dona Filó. _ Mário Sérgio já o matou para mim.
_ Eu não entro aí nem morta. _ Disse Clarice.
_ Pois eu quero minha fita. _ Disse Rosinha enquanto entrava._ Mas quero distância de Mário Sérgio. Que nojo! _ Disse a mocinha para o rapaz.
_  Vou embora. _ Disse Clarice.
Clarice tinha pavor de ratos e sapos. Se estivesse perto de uma barata, partia pra cima com um chinelo e acaba com o problema. Mas um rato era coisa muito diferente. Não conseguia nem olhar para o bicho. Coisa mais nojenta. Não sabia como Mário Sérgio tinha coragem de ficar perto de uma coisa tão pavorosa.
_ Deixe de bobagens _ Disse Rosinha, balançando a cabeça com ar de enfado. _ Não vê que o bicho já está morto. Que mal pode te fazer?
Se Rosinha, que era praticamente uma menina , entrara no armarinho. Não ia fazer papel de boba na frente de Mário Sérgio. O que ele ia pensar dela? Não ia deixar que uma pirralha parecesse mais forte que ela. Se a garota entrou, ela também entrava. Mas passou de longe por Mário Sérgio.
_ Quero esta fita, dona Filó._ Escolheu Rosinha. Mas não parava de olhar pro rato. Pegou a fita e praticamente saiu correndo do armarinho. Deixando Clarice para trás. Grande valentia a dela. Todo aquele show de descaso diante do rato morto não passava de uma farsa. Grande atriz era Rosinha. Clarice devia mesmo ter voltado da porta. Mas já que estava ali, ia fazer o pedido a dona Filó. Rosinha havia de lhe pagar. Também não podia chegar em casa sem a encomenda da mãe. Sabia que ela tinha pressa. Clarice não podia falhar.
_ Espere um pouco, Clarice. Vou jogar este rato fora._ Disse dona Filó.
Clarice continuava com medo. Mário Sérgio parecia se divertir. Estava com aquele sorriso no canto dos lábios que Clarice conhecia bem.
_ Pra longe de mim, com esta mão de rato, Mário Sérgio._ Disse Clarice.
Ele avançou para ela como quem vai tocá-la e riu. Era a primeira vez que isso acontecia desde que pararam de se encontrar no Grupo Escolar. Depois que cresceram. Tornaram-se formais um com o outro.
Ficaram conversando por um tempo enquanto dona Filó se livrava do rato morto e Clarice se esqueceu da promessa que fizera de não  se ligar em Mário Sérgio.
Ele se despediu dela e de dona Filó. Clarice ficou no armarinho escolhendo as linhas que a mãe solicitara. Gostava muito quando o moço lhe dava atenção. Ele sabia ser agradável quando queria e Clarice se sentia bem com isso. Seria tão bom se ele fosse sempre atencioso. Mas Mário Sérgio era uma pessoa muito imprevisível.
Na saída do armarinho encontrou Mário Sérgio que admirava  a obra da estação de trem. Ele olhou para Clarice que chegava perto. Será que ele estava a esperando? Isso era muito bom para ser verdade.
_ Está ficando uma beleza, não está?_ Ele perguntou para Clarice.
_ Sim. _ Disse Clarice, enquanto olhavas a obra. Também havia se interessado pela obra, Mas no momento, seu interesse maior era em Mário Sérgio. Ela continuou seu caminho e ele caminhou ao lado dela. Sentiu-se feliz. Estava fazendo progressos. A donzela que caminha junto de um rapaz. Era a primeira vez que caminhavam juntos.depois de grandes.
Lembrou-se de uma vez que fizeram um trabalho escolar juntos. Mário Sérgio era o único menino do grupo. Por que ele aceitara? Não se lembrava. Naquela época era meninos para um lado e meninas para o outro.
Lembrava-se que Mário Sérgio era o único menino do grupo. Era estranho, lembrava-se Clarice agora. As meninas que foram fazer o trabalho com ela não eram suas melhores amigas. Por que aquele grupo se formara? Por que Mário Sérgio também estava no grupo sem nenhum menino para lhe fazer companhia. Por que ele aceitara? Clarice não conseguia lembrar.
Só lembrava que em determinado momento, faltara papel e ela e Mário Sérgio foram buscar no armarinho de dona Filó. Mário Sérgio a carregara na bicicleta da mercearia. Ficara um pouco envergonhada, mas nem, tanto. Naquela época, seus interesses eram outros. Mário Sérgio não fazia frente a seu primo Olavinho.
Eles entraram na mercearia e Clarice pegou o embrulho com Chiquinho. Ela e Mário Sérgio se despediram. Estava começando a amar aquele sorriso.



Abriu a janela e deixou que o sol batesse em cheio em seu rosto. O sol! Quanto ansiara por ele. Olhou a réstia de sol que penetrava em seu quarto, trazendo para dentro dele o perfume do dia lindo que estava lá fora. Como era bom ter o sol depois de tanto tempo de nuvens sombrias.
Olhou as partículas de poeira que dançavam na réstia de luz. Era como se estas partículas também estivessem contentes com aquele dia lindo e que caminhavam ao encontro do sol. Gostaria de sair correndo pelo quintal. De sair para a rua. Ver o mundo, as pessoas, mas não tinha ânimo de sair de dentro de casa. Preferiu ficar olhando a luz que insidia sobre tudo. Como era alegre um dia de sol.





A filha de dona Filó atendeu Clarice. A mãe recebera uma encomenda e não tinha a linha do tom. Dona Amália era praticamente sócia de dona Filó, de tanto que comprara naquele armarinho.
_ Está bonita, Judite. E perfumada também. Está apaixonada?
A mulher olhou Clarice enviesado. Eram geral era sorridente, brincalhona. No entanto, naquele dia, apesar de bem vestida e perfumada, estava com ares de poucos amigos. Clarice sentiu vontade de ser uma formiguinha, para desaparecer dali.
_ Desculpe-me. _ Falou num fio de voz. Judite era uma solteirona. Perto dos quarenta e nada de casamento. Era capaz de se sentir desconfortável com certos assuntos.
_ Deixe de pedir desculpas por tudo, Clarice. Você já não é mais uma menina.
E se não se cuidasse, ia acabar ficando pra tia, como Judite. Até que era bem apessoada. Talvez nem tanto. Era só, mas não era amarga. Mas naquele dia ...
_ Acho que este tom chega bem perto. _ Disse Judite encostando um fio de linha na amostra de tecido que Clarice lhe trouxera. _ Que acha, Clarice?
_ Está ótimo.
_ Quanto entusiasmo! _ Disse a outra em tom de ironia. _ Não ficou zangada comigo, ficou?
_ Não. _ Respondeu Clarice sem jeito.
            _ Não é culpa sua, Clarice. _ Disse a outra. _ Me desculpe você, viu?
            _ Tudo bem.
            _ Fiquei com vergonha, foi isso. Sabe, Clarice. Não é por que a gente já não é uma mocinha que deve se descuidar. Ontem fui numa festa com mamãe. Não estava com muita vontade. Não dá ânimo de ir a uma festa depois de se ficar o dia inteiro em pé atrás de um balcão. Você não sabe o que é isso.
            _ Também tenho os meus afazeres, Judite.
            _ Não me leve a mal, Clarice. Eu sei. Pois bem. Fui à festa com a mamãe. E deixei tudo pra cima da hora. Não fiz um penteado, nem as unhas. Coloquei a primeira roupa que me apareceu. Ia trocar, mas mamãe estava em cólicas e tive que sair correndo. Mamãe faz questão de ser a primeira a chegar na festa. Pode?
            Clarice riu. Essa era a Judite que conhecia. Era muito divertida.
            _ O pior é mamãe, que gosta sempre de ser a última a sair. _ Disse Clarice rindo. _ E então começa a faxina. Limpa mesas, arrasta cadeiras, junta lixo. O no final, que os meus pés já estão doendo nos saltos, sempre acabo com uma vassoura na mão.
            _ Somos duas pobres meninas, Clarice. _ Disse Judite rindo. _ Acredita-me que um dia chegamos tão cedo em uma festa que o dono da casa nos ofereceu um lanche?
            _ Não!. Disse Clarice entre divertida  e horrorizada.
            _ Palavra de honra! _ Disse Judite com uma daquelas caras que só ela sabia fazer._ O lugar era longe. Saímos de casa com dia claro. Mamãe tinha medo de errar o caminho. _ Não conhecia quase ninguém e os poucos conhecidos que eu tinha, só me cumprimentava de longe. Fiquei a festa inteira sozinha.
            _ E sua mãe?!
            _ Acredita que encontrou com uma velha conhecida que a levou para visitar uma irmã entrevada na vizinhança? Disse que se demorava um minuto e voltou depois que o bolo havia sido partido. Coisas de mamãe. Em outra não me pega! Vivo dizendo isso, mas não adianta. Mamãe sempre me apronta mais uma.
            _ Pobre Judite. _ Disse Clarice rindo.
            _ Pois então! Voltando a festa de ontem. Mamãe apressou-me tanto que nem deu pra fazer uma maquiagem decente. Mal deu pra jogar um perfuminho. Aquele de todos o dias, foi o primeiro que me veio a mão e passar um batonzinho. Mas foi tão pouco e devo ter chegado a festa já sem ele.
            _ E como foi?
            _ Fiquei morta de vergonha,não é, Clarice? Estava todo mundo tão arrumadinho. Vi que estava na hora de me cuidar um pouquinho.
            _ É bem verdade, Judite, pois do contrário acaba pra tia.
            _ Vou fingir que não escutei. _ Disse Judite fazendo um muxoxo. _ Tu que não se cuide também, pois está indo pelo mesmo caminho. Laurinha é mais nova que você e já está casada e com filhos.
            _ Laurinha sempre foi uma apressada.
            _ O coelho e a tartaruga!
            _ Eu sou uma tartaruga e você um bicho preguiça.
            _ É pra rir ou posso ficar te devendo? Ta certo, dona Clarice, me venha com todas as ofensas. Fique sabendo a senhora que ontem ganhei um gatinho.
            _ Um gatinho?! _ Perguntou Clarice sem muito acreditar. _ Ou seria um gato velho.
            _ Um gato velho fique a senhorita pra você, que já não é nenhuma  mocinha. O meu era um gatinho mesmo. Mas novo até que você. E olha que era o rapaz mais bonito da festa.
            _ Quer dizer que está namorando?! Não disse que estava apaixonada? Conte-me tudo como foi.
            _ Que namorando! Olha se tenho idade para está apaixonada. Ainda mais por um gatinho. Ele só me olhou algumas vezes. Não dei muita trela pra não fazer papel de ridícula.
            _ Que ridícula, Judite? Ainda é muito bonita.
            Judite ficou séria.
            _ Por quanto tempo, Clarice? Quer um conselho? _ Disse a outra pegando em sua mão. _ Não deixe o tempo passar demais. A beleza pode até continuar por muito tempo, mas a juventude se vai e cada coisa tem seu tempo. Não deixe a vida passar demais, Clarice. É melhor correr enquanto há tempo. Deixe-me embrulhar as linhas que dona Amália deve ter pressa.
            _ Disse-lhe que vinha de um pulo. _ Lembrou-se Clarice.
            _ Você está vendo como o tempo corre depressa?
            Clarice entendeu o significado daquelas palavras. Se não queria terminar como Judite, era hora de tratar de arranjar um marido.     



O negócio com Mário Sérgio não andava. Não estava vendo futuro para aquele seu rompante de paixão ou qualquer outra coisa que agora sentia por ele. Em certos dias achava que podia dar certo. Em outros, o rapaz a tratava como se ela nem mesmo existisse.
Recebeu a visita de Arnaldo. Que maçada! Não estava para fazer sala. Falaram sobre amenidades. Que vontade de sair correndo. Em alguns dias a visita de Arnaldo era até agradável. Dizia-lhe palavras bonitas, massageando-lhe o ego. Mas não era aquele dia. Não queria ficar de conversinhas com Arnaldo. Gostava do rapaz, achava-o boa pessoa. Bom, honesto e trabalhador. Muito mais propício que Mário Sérgio, que não lhe dava a mínima.
Mas faltava em Arnaldo alguma coisa que Clarice não sabia explicar. Fosse  Mário Sérgio que lhe desse tanta atenção, a história seria outra.  Com  Mário Sérgio era tudo mais difícil. Não conseguia decifra-lo, mas tinha algo que a puxava para ele que Clarice não podia entender.
Quando dera por certo acabar com sua vida de solteira, por que não se decidira por Arnaldo? Seria tão mais fácil! Nada de se dar ao trabalho de conquistar ninguém. E agora estaria tudo resolvido.
Mas que graça tinha ganhar uma guerra sem entrar em uma batalha? Com  Mário Sérgio era assim. Ganhava uma batalha aqui, perdia outra ali. Quanto tempo duraria esta guerra? Do jeito que as coisas estavam, era bem capaz que fosse a “Guerra dos Cem Anos”. E lá estaria ela, velhinha, solteira e sem filhos. Mas enquanto Mário Sérgio não se casasse, ainda haveria esperança.
Se Arnaldo soubesse de seus pensamentos, certamente a desprezaria. Ela mesma se desprezava por isso. Ele ali, todo tão seu, enquanto ela fazia das tripas coração para conquistar alguém que pouco denotara saber da sua existência. Era bem capaz de que só existisse para ele enquanto estava na sua frente. Talvez nem se lembrasse dela em momento algum. Sonhara com ele esta noite. Sonhara que queria ficar com ela. Só mesmo em sonhos!
Arnaldo se despediu.
_ Vamos tomar um sorvete, Clarice? _ O rapaz perguntou.
 Estava demorando.
_ E eu lá sou mulher de sorvetes, Arnaldo?
_ Como assim?! _ Espantou-se o rapaz.
_ Deixe pra lá, Arnaldo. Não venha com bobagens, está bem?
Arnaldo não desistia nunca. Podia ter concordado em tomar um sorvete com ele. Que mal tinha? Mas não queria criar expectativas. Não brincava com os sentimentos das pessoas. Arnaldo era bom. Não merecia isso.
            _ Está bem. _ Ele disse meio sem jeito. _ Está bem tarde. Até qualquer dia.
            _ Até mais. _ Ela disse.
            Entrou e foi se deitar. A visita de Arnaldo lhe fizera mais mal do que bem. Talvez estivesse no caminho errado. Mas o que fazer? Escolhera Mário Sérgio. Estava feito.






_Clarice. _ A chamou dona Iná._ Pode acompanhar Rosinha até a praça? Estou tão cansada.
Não estava mesmo gostando daquele novo cargo de segurar velas. Estava muito velha para isso. Aquilo era serviço para crianças.Ou para gente velha. Nessa caso, Clarice estava muito jovem ainda. Será que já estava com cara de velha solteirona?
_ Posso sim, dona Iná._ Respondeu para a senhora.
Clarice não gostava de negar nada para ninguém. Principalmente os mais velhos. Não ficava bem. Dona Iná era uma senhora tão boa. Não tinha coragem de dizer que não iria. Rosinha também ficaria muito infeliz de não poder ir à praça.
Probrezinha. Também precisava espairecer. Era tão jovem e não tinha irmãos. Rosinha sempre fora uma menina muito sozinha. Não brincava com as outras crianças. A mãe não deixava. Lembrava-se de Rosinha, quando pequena, brincando com as bonecas e panelinhas, sozinha na varanda da frente. Rosinha conversava com as bonecas. Clarice tinha pena da menina.
Por vezes chegara a brincar com a menina, para lhe fazer companhia. Deve ser por isso que Rosinha ficara tão confiada e não percebia os dez anos que a separavam. 
Foi para a praça. Estava cheia. Estava um pouco desanimada com Mário Sérgio. Talvez ele não fosse rapaz para ela. Rosinha foi falar com Adalto e Clarice não teve ânimo de segurar vela. Juntou-se a um grupo de amigas de infância. A conversa não parecia fluir. Por que as pessoas se perdem umas das outras?
Mário Sérgio não estava na praça, naquele dia, mas Chiquinho estava. Chiquinho era bom moço. Tinha verdadeira adoração por Mário Sérgio. Era o irmão mais velho que Chiquinho não tinha. Mas Mario Sérgio era mais sozinho do que Chiquinho. O garoto tinha pais e uma irmãzinha ainda menina. Mário Sérgio não tinha ninguém além da avó. Não tinha irmãos, como Rosinha e quando os pais se foram, teve que deixar sua própria casa, para morar no casarão. Não perdera apenas os pais, perdera também o seu lar.
O pai de Chiquinho tinha seu próprio negócio, mas o rapaz preferia ficar na mercearia com Mário Sérgio. Tudo que Mário Sérgio fazia era um espelho para o primo. Queria imitá-lo em tudo. Era verdade que Chiquinho ainda era um adolescente, mas Mário Sérgio com sua idade, já tinha quase a altura quem tem. Mário Sérgio saíra aos Guimarães. Alto, forte e louro. Chiquinho saíra ao pai. Não puxara em nada a família da  mãe.
Anita estava do seu lado. Tinham sido amigas nos tempos de escola. Anita era aquele tipo de menina que já nascera bonita e que ia se tornar uma moça bonita, que mais tarde se tornaria uma mulher bonita e bem mais tarde seria uma velha bonita. Até agora Anita tinha cumprido com o prometido. Era uma linda moça.
Lembrava-se de Anita ainda menina, com lindos cachos castanhos claros, coroados por fitas de cetim cor de rosa. Anita adorava rosa. Era uma menina cor de rosa. Todos os meninos eram apaixonados por ela. E as meninas faziam de tudo para está ao seu lado. O mundo se curvava às vontades de Anita. Admirava-se por ainda não haver se casado. Partidos é o que não lhe faltavam, mas Anita gostava muito de escolher. Ela que não demorasse, pois caso contrário, bonita ou não, acabava ficando pra tia. Quem muito quer, acaba sem nada.
            As duas conversavam sobre amenidades, já não eram tão íntimas como no tempo de escola.
Abel, o moço novo na cidade, aproximou-se de Anita. Veio com aquela conversa tola, de rapaz bobo. Do tipo que estava enamorado. Quando se afastou, Clarice perguntou para Anita:
_ Não é o moço novo, que é ajudante do alfaiate?
_ Ele mesmo. _ Respondeu a moça.
_ Então já estão se dando?_ Perguntou Clarice com um sorriso maroto.
_ É o que parece.. _ Disse a moça com uma cara envaidecida.
_ Parece que gosta de você. Não percebeu?
_ Desde o primeiro dia em que bateu os olhos em mim.
_ Não seja prosa, Anita._ Disse Clarice rindo. Como era vaidosa a moça. Também, sempre tivera todos aos seus pés. Não era de se admirar que Anita fosse assim.
_Que posso fazer?_ Ela perguntou para Clarice com ar de desdém. _ Quando deitei os olhos naquele estranho que estava com os outros rapazes na praça. Ele olhou diretamente para mim.
_ Então foi amor à primeira vista?_ Clarice interessou-se. Gostava muito de histórias românticas. Anita não queria dar mostras de estar interessada, mas o rapaz mostrara um interesse e tanto. Estava mesmo caído por Anita. Isso não se podia negar. Talvez a moça não lhe fosse indiferente. Talvez até estivesse interessada e não queria que as pessoas percebessem.
_Não fale em amor, Clarice. Não de minha parte.
_ Então não está apaixonada por ele? _ Clarice ficou um pouco decepcionada.
_ Deixe de bobagens.
_ Mas o moço parece encantado. Como foi que tudo aconteceu?. Conte-me tudo, Anita.
_ No princípio parecia meio arisco. Mas depois começou a fazer perguntas sobre mim para as pessoas, como se eu não estivesse perto. Depois começou a conversar comigo. Perguntou minha idade e disse a dele. É batata!
_ E você, o que diz?
_ Não digo nem que sim, nem que não. Ele veio atrás de mim na festa de Lucinha. Veio atrás de mim, imagine!
_ Já te pediu em namoro?
_ Não, é muito cedo para isso.
_ Acha que está perto?
Pelo visto sabia que o rapaz levaria um toco. Mas talvez Anita dissesse sim. Era bem verdade que ele não era lá essas coisas, mas o que havia de se fazer? Talvez Anita lhe desse alguma chance..
_ Ainda não sei dizer.
_ O que vai responder?
_ É claro que vou dizer não, Clarice. Você gostaria de se casar com o ajudante do alfaiate? Se ainda fosse o dono da alfaiataria.
Mesmo numa cidade como aquela havia a barreira do preconceito social. Anita era amiga, ou fora, da filha da costureira. Mas daí a casar-se com alguém inferior. Isso nunca! Que fazer? Era a ordem natural das coisas. Ela mesma não queria algo melhor para si? Se o rapaz investisse nela e não em Anita, será que aceitaria? Como podia julgar Anita? Não tinha mesmo o direito de fazer isso.
_ Muito bem, seu Chiquinho. _ Disse Mário Sérgio, que chegara sem que Clarice percebesse,  para o rapaz que estava num grupo ao lado. _ Então me deixou fechar a mercearia sozinho. Era só um sorvete não é mesmo?
_ Deixe de exploração, Mário Sérgio. _ O interrompeu Anita. _ O garoto precisa se divertir.
_ E eu não?
_ Um burro velho é o que você é. Seu tempo de diversão já acabou.
_ Muito bem! _ Disse Mário Sérgio rindo. Nada parecia alterar seu humor. _ Enquanto isso, as duas “mocinhas” ficam aqui na praça por obrigação.
_ Não venha com ofensas, Mário Sérgio._ Disse  Clarice. _ Estou mesmo por obrigação. Vim trazer Rosinha.
_ Que Rosinha? Aquela que está ali debaixo daquela árvore aos beijos com Adalto? _ Perguntou  Mário Sérgio rindo.
Clarice levantou-se de um salto. Então descuidara-se de Rosinha. Se dona Iná soubesse de uma coisa dessas. No mesmo instante localizou Rosinha, que estava num grupo de adolescentes apenas de mãos dadas com Adalto. Namoro mais inocente não poderia. Fuzilou Mário Sérgio Mário com um olhar.
_ Eles não estão fazendo nada de mais, seu antipático.
Mário Sérgio deu uma gargalhada.
_ Parece que não está cumprindo sua obrigação direito, Clarice. Caso contrário não teria levado esse susto.
_ Deixe Clarice em paz, Mário Sérgio! _ Disse Anita. _   Clarice é tão severa quanto uma velha. Acho que era mais jogo para Rosinha ter vindo com a própria mãe.
_ É verdade. _ Concordou o moço._ Clarice sempre foi muito severa com os meninos.
Os dois riram e Clarice ficou irritada. As pessoas devem mesmo sofrer de amnésia. Os meninos é quem sempre foram muito severos com elas. Depois que foi se tornando uma moça bonita é que as coisas começaram a mudar, mas daí já era tarde. Não confiava em nenhum deles.
   _Venham, Anita e Clarice. Trouxe a máquina fotográfica. Quero tirar a foto do grupo. _ Chamou Luiza com a máquina fotográfica em punho.
_ Está bem.. _ As duas concordaram.
_ Venha também, Mário Sérgio. Apesar de você ser um tanto metido.
_ Metido eu?_ Gracejou Mário Sérgio. _ Claro que não. Vamos logo tirar as fotos.
Dito isso, abraçou Clarice. Mário Sérgio a abraçando! Gostou daquele contato.
_Pode tirar a foto. _ Disse o rapaz.
Clarice estava um pouco envergonhada com o contato. E se alguém percebesse? Melhor não pensar no assunto. Eram amigos, ou quase, desde crianças. Era normal que a abraçasse para tirarem uma fotografia.
_ Esperem_ Pediu Luiza. _ Quero juntar todo mundo.
_ Mas não se demore, Luiza. _ Disse Clarice. _ Já é tarde e não posso me demorar com Rosinha.
Luiza foi buscar mais pessoas. Janice se juntou ao grupo.
_ Vamos logo com esta foto. _ Disse   Mário Sérgio, que naquele dia parecia inspirado. E abraçou Clarice mais uma vez. Também abraçou Janice, o que deixou Clarice mais confortável. Não queria ver seu nome em boca de Matilde. As pessoas falam muito.
Clarice tropeçou e se apoiou em Mário Sérgio. Isso era quase um abraço. Se ele soubesse de tudo. Será que Mário Sérgio percebia alguma coisa? E a foto não saía. Será que Luiza queria fotografar toda a cidade? Tinha que ir embora, ou levaria uma reprimenda de dona Iná. Já era hora de Rosinha estar em casa.
Finalmente a fotografia saiu.  Mário Sérgio a abraçou. Ficou feliz com isso. Outras pessoas também estavam na pose, mas ela só sentia Mário Sérgio. Era como se de repente o mundo parasse e tudo o que ela sentia era a mão do rapaz em seu ombro. Por que escolhera  Mário Sérgio?





Clarice lavava a louça enquanto se lembrava de Mário Sérgio.
_ Vamos até a mercearia, Clarice?_ Perguntou Rosinha, que surgiu na porta sem a mínima cerimônia. Mercearia! A palavra estava se tornando música aos ouvidos de Clarice. Podia ver Mário Sérgio!
_ Claro, Rosinha. _ Disse Clarice enquanto enxugava as mãos no avental. _ Deixe-me trocar de roupa. Você espera um bocadinho?
_ Trocar de roupa para que, Clarice? Está ótima. Demais a mais, o que vamos ver na mercearia? Lá só tem o Chiquinho e o Mário Sérgio. A não ser que... Já sei! É Mário Sérgio!
_ O que tem Mário Sérgio, menina?
_ É pra ele que quer se enfeitar! Janice me disse que os viu andando uma vez pela rua. E ontem, na praça? Ele a abraçou para tirarem a fotografia.
_ E que tem isso? Somos apenas amigos. Amigos desde crianças.  Não sabe que estudamos juntos?
_ E daí?
_ Ora, Rosinha, deixe de bobagens. Não vou mais com você à mercearia.
 _ Está apaixonada por Mário Sérgio! _ Disse Rosinha, como quem faz uma grande descoberta.
_ Apaixonada, eu? Deixe de sandices, menina!
_ É claro que está. _ A outra se animou. _ Está até vermelha.
_ Não sei de onde você tirou uma asneira dessa.
_ O amor é cego e pensa que os outros não enxergam também. É claro que está apaixonada por Mário Sérgio.
_ Não vou ficar discutindo com você, Rosinha. Não  vou poder mesmo ir com você à mercearia. Mamãe precisa de ajuda com as costuras. E pare de pensar bobagens, viu?
_ Quero bolo! _ Disse a mocinha enquanto saía.
Clarice estava assustada. Apaixonada por Mário Sérgio. Ela? Não podia ser! Escolhera Mário Sérgio racionalmente. Não tinha nada a ver com paixão. Decidira-se casar e escolhera Mário Sérgio. Conseguira algum progresso, mas não tinha nada a ver com paixão. Não podia estar apaixonada por ele. Isso não estava nos seus planos.
Conheciam-se desde meninos. Tinham quase a mesma idade. Ele era apenas alguns meses mais velho que ela. Estudaram juntos durante toda a vida escolar. Nunca tivera olhos para Mário Sérgio. Nem ao menos ia com a cara dele. Como podia estar apaixonada da noite para o dia? 

_ Clarice! _ Chamou a mãe poucos dias depois. _ Preciso de batatas para o almoço e o sabão acabou. Pode buscar na mercearia pra mãe?
Mercearia: Mário Sérgio. Mário Sérgio: mercearia. Não queria ir. Estava evitando o lugar desde que Rosinha saíra com aquela história de que ela estava apaixonada por Mário Sérgio. Não podia ficar fugindo a vida toda. Talvez Rosinha não tivesse dito nada.
Foi até a mercearia. Com sorte Mário Sérgio não estaria lá. Podia ser que Chiquinho estivesse em seu lugar. Chiquinho estava, mas Mário Sérgio também e foi ele quem veio atendê-la.
Ele sorriu para ela. Sua cara queimou.
Ele sabe! Ele sabe! Rosinha deve ter batido com a língua nos dentes!
Não podia ser verdade. O que ia fazer agora?
_ Bom dia, Clarice. O que vai ser desta vez?
_ Bom dia, Mário Sérgio. Vou querer um quilo de batatas e dois tabletes de sabão.
Sabia que estava vermelha. Rosinha havia de lhe pagar. Mário Sérgio sorria e estava com um sorriso de quem zomba.
Voltou quase correndo para casa..Os homens daquela família! Lembrou do dia em que dona Duca falara sobre o noivado de Olavinho. Parecia que fora há séculos atrás. Fora antes de se interessar por Mário Sérgio. Lembrara que a sensação fora desagradável. Ela tinha sido apaixonada por ele quando criança. Apaixonada é uma palavra muito forte. Todos os sentimentos de outrora pareciam água diante do que agora sentia por Mário Sérgio.
Mas Clarice achava Olivinho simplesmente lindo. Achava que a última vez que o vira fora numa festinha de crinça há muitos anos atrás. Ele devia estar entrando na adolescência. Mas Clarice não tinha muita certeza disso.
No início de sua adolescência, Anita contou que passou um final de semana na casa dele. Clarice morreu de inveja, mas quis saber todos os detalhes. Crianças e adolescentes acham o máximo ver o sucesso dos outros, numa área que eles gostariam de estar se dando bem.
Clarice podia até tê-lo visto de relance, de muito longe, mas não se recordava bem. Depois de jovem, Sandra, sua prima, trabalhou para ele, numa mercearia, num bairro vizinho. Clarice achava o máximo Sandra conviver com aquela lindeza. Mas a Sandra nem ligava. A prima sempre fora assim. Nunca dera a mínima bola para pessoas mais jovens. O Olavinho devia ser um pouco mais velho que Clarice, mas era mais jovem do que ela. Se é mais jovem, a Sandra simplesmente nem vê.
O fato era que o Olavinho nunca ligou para Clarice. Nunca lhe deu a mínima bola. Não se lembrava se algum dia chegaram a trocar uma palavra, mas sua figura sempre a encantou. Era como uma figura mitológica, saída de um tubo de televisão a passar por ela. Só passar, pois se falar estraga. Quando a gente chega perto de uma pessoa dessas e conversa com ela e vê que esta pessoa é de verdade, acaba perdendo a graça. Não tinha sido assim com o seu último namorado? Ela o achou posudo e quando o namorou. Céus! Deu vontade de sair correndo e saiu mesmo. Pessoas de verdade são muito complicadas.
O irmão dizia que Clarice só gostava de gente da televisão. E era verdade. Achava um homem lindo e o amava de paixão. Se ele representava um vilão, não ligava., porque sabia que aquilo era só representação. Mas quando lia uma entrevista ou via um programa de entrevista e via como aquela pessoa era de verdade, ficava desiludida. O melhor seria se os galãs não falassem, só representassem.
Por que tinha que se apaixonar por Mário Sérgio? 





Dona Iná insistiu para que Clarice a acompanhasse a praça. Ainda estava agastada com a adolescente fofoqueira. Rosinha não merecia sua companhia. Mas dona Iná pedira na frente de sua mãe e Clarice teve medo que Rosinha desse com a língua nos dentes. De modo que não teve outro jeito a não ser acompanhar a menina.
Caminharam as duas em silêncio. A menina ia de cabeça baixa. Clarice não queria discutir com crianças. Não iria descer tão baixo. Ia esperar pra ver como a história acabaria. Com um pouco de sorte tudo cairia no esquecimento.
_ Olha que bela rosa no jardim de dona Ana, Clarice._ A mocinha resolveu puxar conversa.
_ Não pense que esqueci o que me fez, Rosinha. Não quero falar neste assunto, nem em qualquer outro por enquanto.
Encontraram Anita antes de chegar à praça.. Queria saber à quantas andava o seu romance com Abel, o novo ajudante do alfaiate. Mas não o queria fazer na frente de Rosinha. Chega de mexericos.
_ E o moço da alfaiataria? _ Perguntou Rosinha à Anita.
Então tornara-se uma profissional a pequena? Rosinha estava se tornando uma Candinha daquelas.
_ Deixe de se intrometer na vida dos outros, Rosinha. _ Clarice ralhou.
_ Deixe pra lá, Clarice. Não tem  a menor importância.

Pela cara de Anita, sabia que o romance azedara. Tão cedo e já haviam brigado?
_ Vocês brigaram? _ Perguntou Clarice.
_ Qual nada, desandou e pronto. Não ligo. Um passinho à frente que a fila quer andar.
_ Não diga bobagens, Anita. O moço parecia tão enamorado.
_ Mas não sei o que lhe deu. E uma hora pra outra virou-me a cara. Já não me olha mais. Pouco fala comigo.
_ E o que fez com o moço?
_ Juro-lhe que nada. Alguns romances são assim, Clarice. Desandam e pronto. Eles te olham como você fosse uma rainha e de uma hora pra outra lhe viram a cara. Sem nenhuma explicação. E então, instaura-se entre os dois um mal estar tal que não há lugar nem para uma boa amizade. Isto nunca te aconteceu?
_ A mim nunca. _ Intrometeu-se Rosinha.
_ Bem se vê, Rosinha, com tua pouca idade._ Disse Anita._ Mas espere e verá. Antes não espere nada. Agarra-te com Adalto que é bom moço e moço trabalhador e trate de o levar ao altar tão logo vocês tenham idade. Palavra de quem já está ficando para tia. E tu,Clarice trate de agarrar bem e amarrar Mário Sérgio, que este já tem idade para casar.
Levou um baita susto. Então Anita também sabia. Quantos mais saberiam?
Chegaram à praça. Que já estava cheia. Rosinha correu para um grupo de amigas de sua classe. Anita a levou para um grupo de moças e rapazes no qual estava Mário Sérgio. Estava muito bem vestido naquele dia. O coração de Clarice disparou quando o viu. Era a primeira vez que aquilo acontecia frente a Mário Sérgio. Nem se lembrava a última vez que aquilo lhe acontecera. Ficara esquecido com amores da adolescência. Não sabia que os adultos também tinham seus corações disparados.    
_ Venha, Clarice. _ Disse Vilma, que estava sentada próxima de Mário Sérgio. _ Sente-se aqui conosco.
Vilma levantou-se e deixou vago o lugar junto de Mário Sérgio. Todos estavam com aquela cara zombeteira. Até mesmo Mário Sérgio.
_ Não precisa levantar-se de seu lugar, Vilma. _ Disse Clarice muito sem jeito.
_ Que nada, Clarice. Estava mesmo querendo comprar pipocas. Não é, Cida?
_ Isso mesmo. _ Disse a outra, levantando-se também.
_ Também vou. _ Disse Clarice.
_ Mas acabou de chegar. _ Disse um dos rapazes. _ Fique, Clarice. Queremos conversar um pouco com você. Não é, Mário Sérgio?
_ Claro!_ Disse o rapaz, parecendo um pavão.
Ia matar Rosinha por torná-la a mais nova chacota da cidade. De minuto a minuto, cada rapaz e moça deixou o grupo com uma desculpa esfarrapada. Até que só sobrou ela e Mario Sérgio no banco da praça. Mas ninguém foi embora. Estavam em outros bancos, de pé, por todos os lados. Não só ele, mas como a praça inteira sabia de tudo. De repente, tornara-se a sensação da praça. Foi ficando sem jeito. Envergonhada, mais do que já estava. Foi ficando gelada. Queria ir embora. Não fora boa idéia atender o convite de dona Iná.
_ Boa noite, Mário Sérgio. _ Disse enquanto se levantava. _ Já está ficando tarde.  
_ Está certo. _ Disse Mário Sérgio se levantando também. _ Eu levo você.
_ Me levar em casa! Por quê? Moro tão perto.
_ É o que todos esperam que eu faça, não é, Clarice?_ Disse ele rindo.
_ Mas não é o que eu espero. Não faço nada por causa dos outros._ Disse Clarice enquanto já caminhava.
Mário Sérgio a seguiu.
_ Já não disse que não precisa?. _ Disse Clarice entre os dentes.
_ A rua é pública.
Ele parecia divertir-se com a situação.
_ Como quiser.
Clarice podia notar o sorrisinho de todos. Ia dar uma surra em Rosinha. Ao atravessarem a rua, Mário Sérgio segurou em sua mão.
_ Isso já é demais! _ Disse Clarice enquanto puxava a mão.
Mas Mário Sérgio não soltou. Segurava firme.
Que vergonha, meu Deus. O que vão pensar de mim?
_ Por que está fazendo isso comigo, Mário Sérgio? Não quero virar a chacota da cidade.
_ Não disse que não faz nada por causa dos outros?
_ Estou tão envergonhada!
_ Deixe de bobagens, Clarice. Você já não é mais nenhuma menininha.
_ Por isso mesmo. Não tenho mais a idade de Rosinha. O que ela disse para você, Mário Sérgio?
_ Nada.
_ Como nada?! De repente você e toda a cidade mudam de comportamento comigo e você me diz que Rosinha não falou nada?
_ Foi você quem começou a mudar de comportamento primeiro, Clarice.
_ Odeio você, Mário Sérgio.
_ Odeia nada!
Disse o rapaz rindo.
_ Pronto, chegamos. Solte minha mão, porque não quero que papai ou mamãe nos vejam assim. Obrigada pela companhia e boa noite. _ Disse Clarice enquanto abria o portão.
_ Só isso?.  Ele perguntou.
_ Só isso, o quê?
Não teve tempo para receber nenhuma resposta. Mário Sérgio lhe deu um beijo daqueles. Primeiro levou um susto. Depois teve raiva. Como ousava? Quando ia empurrá-lo, descobriu que estava gostando do beijo. O que podia fazer? O beijo já estava acontecendo mesmo. Não tinha mais volta. Então correspondeu ao beijo.
Beijara pouquíssimas vezes, mas decididamente, aquele fora o melhor. Não acreditava em beijo bom e beijo ruim. Não até aquele momento. Mário Sérgio, quem diria? Se alguém lhe dissesse isto há uns meses atrás, ela cairia na risada.
O beijo acabou e Clarice voltou a sentir vergonha. Desvencilhou-se do rapaz. Tinha vontade de sair correndo.
_ Boa noite, Mário Sérgio.
_ Boa noite, Clarice. Amanhã falo com teu pai.
_ Falar o quê? – Ela assustou-se.
_ Que estou namorando a filha dele. Não sou nenhum moleque.
_ Mas não estamos namorando.
_ Estamos sim, Clarice e a cidade toda já sabe. Esse namoro já começou e foi você quem deu o primeiro passo. Não vai voltar atrás agora. Sonhe comigo. _ Disse Mário Sérgio já se pondo a caminho.
_ Mas eu não quero.
_ Não quer? _ Ele deu meia volta e soltou uma gargalhada. _ É bom saber o que você realmente quer, Clarice. Eu não me lembro de ter beijado sozinho.
_ Boa noite, Mário Sérgio. _ Disse Clarice, entrando em casa numa carreira.
Estava morta de vergonha. Correspondera ao beijo. Fora ela quem começara com tudo isso. Ele tinha razão.Tudo tinha sido culpa dela. Não tinha mais jeito. Que fosse o que Deus quisesse.



Os dois estavam na sala. Ainda não se acostumara com aquele namoro com Mário Sérgio. Era muito estranho que agora fossem namorados. Por que ele aceitara tudo aquilo? De repente o rapaz fez uma cara de dor.
_ O que foi, Mário Sérgio? – Ela perguntou. _ Está sentindo alguma coisa?
_ Meu braço está doendo desde ontem. Começou quando levantei umas caixas na mercearia.
_ Pode ter havido alguma distensão. Precisa ir ao médico.
_ Não sei se é preciso. Dói um pouco. O que faço?
Era a primeira vez que Mário Sérgio lhe fazia uma pergunta como aquela. Importava-se com sua opinião. Era como se pela primeira vez ela fizesse realmente parte de sua vida.
_ Acho que deve ir ao médico. _ Ela lhe sorriu com carinho. Estava emocionada. Seria tão bom se Mário Sérgio sentisse por ela o mesmo que ela sentia por ele.
Às vezes achava Mário Sérgio muito distante. Por outras lhe dava alguma atenção. Como agora. Ele olhou para ela e só então fez a cara de dor. Parecia mesmo que ele queria que ela perguntasse o que estava havendo. E depois lhe perguntara o que fazer. Mário Sérgio era mesmo uma incógnita. Por que escolhera Mário Sérgio? Quando tudo começara, nem ao menos pensava nele. E agora estava ali, entregue, sem saber se era correspondida ou não. E se ele achasse que era uma oferecida? E se ele estava com ela apenas porque toda cidade achava que deveria estar?
_ Uma moeda por seus pensamentos. _ Ele disse.
_ Não valem isso. _ Ela respondeu.
_ Que tal um beijo?
E Mário Sérgio fez aquela cara que ela odiava e amava ao mesmo tempo. Cara de gente convencida. Mário Sérgio, o rei da cocada preta. Ele podia não ser ambicioso. Pra que mais? Ele já achava que tinha o rei na barriga. Talvez fosse isso que a fascinava em Mário Sérgio. Ele não parecia ter falta de nada. Era como se ele tivesse tudo, mesmo tendo tão pouco. Queria ser esta autoconfiança. Era muito confortável.
_ Sem moeda, sem beijo. _ Disse ele por fim. _ Seus pensamentos estão muito longe. . _ Ele se levantou. _ Tenho que ir embora, amanhã acordo cedo para abrir a mercearia.
Ela também se levantou. Olhou pra cima. Ainda não acostumara com toda essa altura de Mário Sérgio. Quando eram pequenos, a diferença não era tão grande assim. Agora parecia tão forte, tão senhor de si. Era muito estranho que seus sentimentos por ele tivessem mudado tanto assim.
Quando eram pequenos, ela nem mesmo sentia alguma simpatia por ele. Estudaram juntos, mas não brincavam juntos. Na adolescência a situação até piorara. Chegava a ter antipatia por Mário Sérgio. Depois eles foram se tornando adultos e a antipatia foi cedendo. Até que virou uma simpatia, mas uma simpatia polida, sem amizade. E agora ele não saía de seus pensamentos. Como tudo mudara tão de repente?
_ Você está mesmo distante.  Tenho que ir. _ Ele disse enquanto caminhava para a porta.
_ Vou te levar ao portão. Está agastado comigo?
_ Claro que não!
Mas estava. Ela sabia. E se ele não a quisesse mais? E se desmanchasse com ela?
_ Boa noite, Clarice. _ Disse ele lhe dando um beijo na face.
_ Boa noite, Mário Sérgio. E não deixe de cuidar desse braço.
_ Pode deixar.
Ele se foi sem olhar para trás. E se fosse a última vez? E se não voltasse mais? Ia sentir sua falta.
_ Mário Sérgio!_ Ela chamou.
Ele se virou e ela correu para seus braços e o beijou.
_ Sonhe comigo. _ Ela disse.
Ele riu e disse:
_ Vou fazer o possível. Esse beijo valeu mais do que muitas moedas.
Ela lhe deu um forte abraço e suspirou. Como queria ter coragem para dizer que o amava. Que ele era a causa de seus pensamentos estarem longe. Sentiu o seu perfume. Era tão bom. Cheiro de Mário Sérgio! Quando fosse à farmácia, ia pedir que Adalto lhe mostrasse os perfumes e ia comprar um igual. Só para poder sentir o cheiro de Mário Sérgio a hora que quisesse.
_ Eu ia mesmo adorar ficar aqui abraçado com você a noite toda, Clarice. Mas tenho mesmo que acordar cedo amanhã. Boa noite, namorada.
Namorada, ele disse. Ela era mesmo a sua namorada? Não podia mesmo acreditar em tudo aquilo.
_ Boa noite, namorado.
Ela voltou para o portão.
_ Espere. _ Disse ele a puxando pela mão. _ Não se vá sem antes me dar mais um beijo.
Eles se beijaram e Clarice quis acreditar que Mário Sérgio realmente sentia o mesmo por ela.
Ele finalmente se foi. Ela entrou e Mário Sérgio foi seu último pensamento. Quando adormeceu, foi ela quem sonhou com ele. Mário Sérgio não só fazia parte de sua vida, fazia também parte de seus sonhos.




_ Um almoço de domingo? _ Ela se espantou.
_ Claro! Toda a família vai estar lá. Quero que todos conheçam minha namorada.
_ A maioria da sua família já me conhece, Mário Sérgio.
_ Mas agora é diferente. Você é minha namorada.
Um almoço de domingo no casarão. Num estivera lá num dia desse. As crianças brincavam juntas na rua, mas na hora do almoço era cada um pra sua casa.
Lembrava-se dos tempos de Olavinho. Será que ele estaria la? É claro que não. Há muito que não o via por aquelas bandas. Será que se sentiria bem almoçando com a família de Mário Sérgio? A filha da costureira na mesa de domingo do casarão. Nunca estivera na mesa deles em um dia de domingo. Nem sabia como era, como se portavam. Sabia como se portava a sua, mas não a família de  Mário Sérgio.
Será que iriam ficar olhando para ela enquanto comia?
Não gostava de comer na casa dos outros. Sempre detestara. Se ainda fosse só dona Efigênia e a Duca, tudo bem, mas toda a família. Isso não ia prestar. Por que  Mário Sérgio inventara tudo aquilo? Ele mesmo já almoçara em sua casa, mas com naturalidade tal bem própria de sua natureza. Sentara-se à mesa, servira-se sozinho, conversara com seus pais, irmãos e cunhados como se sempre pertencera àquele local. Como se almoçar naquela família fosse algo tão natural como almoçar em sua própria casa.
 Como gostaria de ser como  Mário Sérgio. Para ele era tudo tão natural, tudo tão fácil. Trabalhava como um burro de carga e vivia com a cara de quem levava a vida na flauta. Sempre com aquela cara de gente que está satisfeita consigo mesma e que já conseguiu tudo o que queria da vida. Como ela era diferente dele. Não dizem que os opostos se atraem? Ela sabia que estava atraída por ele. Gostava do seu porte altivo, do seu senso de humor, do seu sorriso. Mas o que atraíra Mário Sérgio para ela?
Fora ela mesma quem o atraíra. Mirara nele e tinha decidido que o teria para si. É claro que Rosinha dera uma forcinha. Uma grande força, na verdade. Quanto a Mário Sérgio, tudo o que fizera era se deixar abater como uma caça. Estava com ele, sim. Mas não fora ele que lhe fizera galanteios, quem se mostrara apaixonado. Tão logo soubera que ela estava interessada nele, decidira que seria seu namorado e aqui estavam. Será que chegaria a amá-la algum dia?
_ Quanto tempo vai ter que ficar aí parada pensando se vai almoçar lá em casa ou não? _ Perguntou o rapaz..
_  É Claro que vou. _ Respondeu com um sorriso.
Não podia ficar se escondendo dentro de uma caverna a vida toda. Que tinha com a família de Mário Sérgio?  Se ele queria que ela fosse, iria.
_ Boa menina. Essa é a minha garota. _ Disse ele lhe dando um beijo estalado na face.
Sua garota, ele disse. Então era a garota de  Mário Sérgio? Estava feliz. Se ele queria que ela almoçasse em sua casa era porque não se envergonhava dela. E por que iria se envergonhar?  Só porque era a filha da costureira? Que tinha isso?  E o que era Mário Sérgio, então?  Apenas um pobre órfão que trabalhava de sol a sol numa mercearia. Mas  Mário Sérgio não tinha nada de pobre órfão. Era altivo, isso sim. Com cara de quem vê o mundo de cima. Talvez fosse isso que a tivesse atraído. Era isso que faltava nela. Moça que andava sempre de olhos baixos, como quem pede desculpas ao mundo por existir.
Abraçou o rapaz. Sentiu o cheiro do perfume que sabia que ia guardar pro resto de sua vida. Comprara um vidro com Adalto. Como quem não quer nada pediu para cheirar todos os vidros. Procurou até que encontrou. O rapaz se espantou quando disse que ia levar. “É perfume de homem.” Ele explicou. Mas depois pareceu entender tudo. “Presente para Mário Sérgio?” Ele perguntou. Ela perguntou por que e ele lhe disse que era aquele que ele usava. Clarice ficou com a cara quente. Fora pega em flagrante. Tanto fazia. Que tinha Adalto com sua vida? 
Cortou a conversa e levou o perfume. Bem mais caro do que a colônia de alfazema que usava. Não era de se admirar que Mário Sérgio usasse um perfume caro. Era bem próprio dele. Não usou o perfume. Não queria que Mário Sérgio soubesse que estava totalmente entregue. O que ia achar dela? Pingou umas gotas no travesseiro para que dormisse sentindo o seu cheirinho. Mas não era igual. O cheiro que sentia agora só era igual no próprio Mário Sérgio. Era como se o perfumista precisasse do próprio homem para fabricar aquele cheiro. Mas Mário Sérgio não podia ser vendido em frasco. E era dela. Só dela. E não lhe custara nem um centavo.


O dia amanhecera claro. Uma linda manhã e domingo. Mário Sérgio combinara de vir buscá-la às onze. Era um dia especial. O dia em que almoçaria pela primeira vez no casarão. Todos estariam lá. Quis tomar banho de banheira. Em geral optava pelo chuveiro. Queria que tudo fosse perfeito. Colocou o vestido novo que a mãe fizera especialmente para a ocasião. A mãe insistira de que não devia fazer feio diante da família de Mário Sérgio.
A roupa lhe assentou muito bem. A mãe gostava do que fazia. Trabalhava com carinho. Sempre dava palpites nas roupas das freguesas e sempre acertava. Costurava com gosto. Fosse Clarice, optaria pelo mais fácil. Era uma mulher prática. Mas a mãe sempre inventava coisas. Às vezes, as freguesas vinham com modelos simples na cabeça. Mas a mãe sempre inventava. Só para ter mais trabalho, é o que Clarice pensava. Mas a mãe não parecia ligar. Queria sempre o mais bonito.
Será que fora da mãe que puxara o gosto pela riqueza? Não. Certamente que não. Ela e a mãe eram muito diferentes. Não tinhas nada em uma que fizesse que alguém se lembrasse da outra. Ana era mais parecida.
Chegaram ao casarão. Clarice estremeceu. O que a esperava? Mário Sérgio pareceu perceber, pois apertou mais forte a sua mão e sorriu para ela. Clarice sorriu de volta.
Ele abriu o portão, que rangeu.
_ Vamos? _ O rapaz perguntou.
_ É claro. _ Ela consentiu num fio de voz, mas o que na verdade queria era sair correndo dali. O que achariam dela? E se ela fizesse algo de errado? E se Mário Sérgio ficasse com vergonha dela? E se ele não a quisesse mais?
_ O que foi? _ Ele perguntou com ar preocupado.
_ Nada. Vamos entrar. _ Respondeu Clarice, já suando frio. E já ia se encaminhando para a porta dos fundos. Mas Mário Sérgio subiu os degraus da varanda. A porta da sala estava entreaberta. Nunca havia passado por ela. Pra tudo se tem uma primeira vez.
_ Venha, Clarice. _ Dona Efigênia a abraçou. _ Como está dona Amália?
_ Está bem e mandou lembranças.
Mais pessoas vieram para sala para ver a “ilustre” visita.  Mário Sérgio fez as apresentações. A maioria delas desnecessárias porque Clarice conhecia quase todos. Numa cidade pequena quase todos acabam sempre se esbarrando, mas Clarice não podia dizer que era amiga daquelas pessoas. Na verdade, não eram do mesmo círculo de amizade, apenas bons e velhos conhecidos. Era preciso ter um pouco mais de dinheiro e posição para ser verdadeiramente amiga dos Magalhães. Como Karina, uma amiga de escola que contara sobre o final de semana na casa de Olavinho.
Ela nem sabia que eles se conheciam. Mas já que Karina era de melhor posição, não era de se estranhar que fosse convidada para um final de semana naquela casa que sempre ouviram falar. “Ele me beijou.”, contou Karina para ela e suas amigas. Estava falando de Olavinho. Ele nunca nem ao menos olhara para Clarice, muito abaixo de sua posição, o mesmo não podia se dizer de Karina. Eles eram iguais, Clarice sabia disso.
Não sentiu ciúmes, sabia que Olavinho não era para ela. Não sabia ao certo se gostaria de estar no lugar da amiga, ou não. Não se sentia bem no mundo de gente esnobe como aquelas. E lá estava ela, hoje, no meio daquelas pessoas. Será que queria mesmo fazer parte de tudo aquilo?
O almoço foi servido na sala de jantar. A mesa era muito grande e estava cheia tanto de gente quanto de comida. Mário Sérgio sentara ao seu lado. Estavam quase todos ali. Parceria o velho e bom almoço de domingo na casa dos Magalhães. A família de Olvinho não compareceu. Seria querer muito ter o comparecimento dos mais bem sucedidos dos Magalhães para um almoço de apresentação da namoradinha do neto órfão de dona Efigênia, ainda mais sendo ela a filha da costureira.
E se cometesse alguma gafe? E se fizesse algo de muito errado na mesa? Será que era isto o que esperavam dela?
_ E pra quando é o casório, Mário Sérgio? _ Perguntou uma das tias.
 Mário Sérgio sorriu.
_ Pra breve, tia. _ respondeu o moço.
Clarice sentiu o rosto arder. Nunca haviam falado em casamento. Será que ele estava brincando? Nunca sabia quando Mário Sérgio estava brincando ou falando a verdade.
_ Então, ta na hora de preparar os doces. Quero bolo. _ Disse uma das primas.
Todos riram e fizeram mais brincadeirinhas do tipo. Mário Sérgio levava tudo com muita naturalidade, como se o casamento fosse algo por eles antes discutido. Não desmentia, não negava. Como se fosse tudo muito natural.
_ Não acha que Clarice se parece com a Telma, mamãe?_ Perguntou uma das filhas de dona Efigênia.
_ Um pouquinho, talvez. _ Disse a senhora. _ Os cabelos são parecidos.
_ Dizem que os homens sempre procuram mulheres iguais as mães para se casarem._ Continuou a tia de Mário Sérgio.
_ É verdade. _ Anuiu o marido da tia . _ Então já sabemos que Clarice é pra casar. Não é, Mário Sérgio?
_ É sim, titio._ Disse o rapaz sorrindo.
Então ele concordava com o casamento. Para ele era tudo muito natural. Se falavam que era pra namorar, ele namorava. Se falavam que era pra casar, ele casava. Será que não tinha vontade própria? Para Mário Sérgio era tudo muito natural.  
O almoço transcorreu sem nenhum acidente. Todos pareciam muito à vontade. Menos ela.
_ Clarice não é de muitas palavras. Não é, Mário Sérgio? _ Disse uma das primas.
Clarice não gostava quando falavam dela como se não estivesse presente. Achava isso uma desfeita. Então não sabia responder por ela mesma?
_ Falava pelos cotovelos, quando estava no Grupo Escolar. _ Respondeu o rapaz.
_ Então estudaram juntos?. _ Perguntou uma tia que morava numa cidade um pouco distante.
_ Desde a primeira série.
_ Então se amam desde meninos? _ Interessou-se a tia.
Clarice enrubesceu. O assunto viera à tona. Como explicar um amor que começava daquele jeito. Ele nunca dissera que a amava. Era bem certo que não amasse. Ia dizer isto diante de todos e ela iria passar a maior vergonha de sua vida. 
Mário Sérgio não disse que sim nem que não. Apenas perguntou para Clarice:
_ Não sei. Você me ama desde de menina, Clarice?
Ficou mudo. Olhou em seus olhos. Estavam divertidos, como sempre. Tudo para Mário Sérgio era motivo de diversão. Não levava nada a sério.
Não o amava desde menina. Isso não era segredo pra ninguém. Tão pouco já dissera para ele que o amava agora. Mas amava Mário Sérgio. Amava-o como nunca amara ninguém. E não tinha coragem pra lhe dizer isso.
_ Deixem a menina em paz. _ Acudiu dona Efigênia. _ Isto não é assunto para se discutir numa mesa tão cheia.
Salva pelo gongo. Devia essa à dona Efigênia.
O almoço terminou. Tinha vontade de sair correndo. Não se sentia a vontade. Mas não podia ir embora tão cedo. Era feio. Quando alguém come na casa dos outros e sai logo em seguida, diz-se que esta pessoa fez igual cachorro magro. Não queria que a família de Mário Sérgio pensasse que ela era um cachorro magro.
Quando a primeira visita partiu, Clarice também partiu. Estava feliz por ter sobrevivido. Ela e Mário Sérgio caminhavam de mãos dadas. Gostava de caminhar junto dele. Mário Sérgio tinha porte. Ar de quem é gente importante. Gostava disso nele. Ainda que muitos pensassem que isto era defeito. Um pouco irritante, às vezes, mas muito charmoso em Mário Sérgio. Era isto que achava.
_ Não vou entrar, Clarice. _ Disse o rapaz quando chegaram ao portão._Tenho que conferir umas mercadorias com Chiquinho.
Algumas mulheres se irritavam por serem preteridas pelo trabalho. Não Clarice. Se  Mário Sérgio se preocupava com o trabalho era bom sinal. Trabalhava sempre, sem reclamar. Era um homem em que se podia confiar. Era honesto e trabalhador. Podia fazer corpo mole, mas não fazia. Cada vez mais admirava   Mário Sérgio.
_ Está bem. _ Sorriu para ele.
O rapaz sorriu se volta.
_ Um beijinho de despedida? _ Perguntou o rapaz com olhar divertido.
_ Claro. _ Respondeu Clarice rindo, dando um beijo estalado em sua face, virando para ir embora em seguida.
_ Assim não vale. _ Disse Mário Sérgio a puxando de volta.
E deu-lhe o beijo cinematográfico de costume. E nesta hora Clarice se esquecia se o rapaz a amava ou não. Se estava com ela por falta de opção ou se gostava dela também. E nesta hora não importava que não o tivesse amado a vida toda ou começado a amá-lo agora. O importante era que amava Mário Sérgio e se sentia nas nuvens quando o beijava.
_ Tchau, namorada. _ Ele sorriu.
_ Tchau, namorado.
Trancou o portão e ficou vendo o moço ir embora. Gostava tanto quando ele a chamava assim. Era como se assim dissesse que ela lhe pertencia. 





_ Quem está aí, Duca? _ Perguntou dona Efigênia, de dentro do quarto.
_ É a Clarice de Mário Sérgio.
Clarice, de Mário Sérgio. Ainda não se acostumara com aquilo. Até bem pouco tempo era a Clarice, de dona Amália. Clarice, que antes pertencia a sua mãe, agora pertencia a Mário Sérgio. Clarice pertencia a Mário Sérgio. E Mário Sérgio, será que pertencia a Clarice?
_ Trouxe as costuras que mamãe pediu que a senhora provasse.
_ Está bem. Vamos até meu quarto. Antes quero lhe mostrar uma coisa.
Ao chegarem ao quarto dona Efigênia abriu um antigo baú e dele retirou um vestido um tanto amarelado.
_ É da mãe de Mário Sérgio. _ Disse a senhora enquanto estendia o vestido sobre o corpo de Clarice.
O cheiro de coisa guardada invadiu suas narinas. Sentiu um ligeiro mal estar.
_ Bonito, não é? _ A senhora perguntou.
Clarice admirou o fino bordado. O tecido era mesmo rico. Era filha de costureira. Sabia quando estava diante de um tecido caro.
_ É bonito, sim senhora.
_ Não consegue imaginar este vestido alvo, não é, Clarice?
A moça nada respondeu.
 _ Duca sabe clarea-lo. Torna-se como novo. Foi ela quem clareou o vestido de Nice, minha filha mais velha. Ela se casou com meu vestido. É uma espécie de tradição em nossa família. Sabia que me casei com o vestido de minha avó? Foi a mãe de Duca que clareou-lo para mim.
Apenas Duca não tivera quem clareasse o seu próprio vestido. Não constituíra família. Dona Efigênia era a única pessoa que tinha no mundo. Já que não tinha parentes.  Alguns anos mais nova que dona Efigênia, fora ainda menina, com sua mãe para o casarão. Parece que dona Efigênia e Duca faziam parte  daquele casarão tanto quanto aquelas velhas paredes.
Dona Duca não se casara. Depois da morte da mãe, assumiu o seu lugar. Cuidando dos afazeres, como a mãe sempre fizera com desvelo. Clarice não conhecera dona Lindalva, a mãe de Dona Duca. Apenas ouvira a história ser contada. Quando nascera, a senhora há muito tinha partido deste mundo.
  _ Não se lembra da mãe de Mário Sérgio, não é?
_ Muito pouco. Apenas uma vaga lembrança.
_ É bem verdade. Você era muito menina quando ela se foi. Era como uma filha para mim. Foi tão cedo. Acho que meu Augusto morreu de desgosto. Eles se amavam tanto.
_ Eu sinto muito.
_ Vamos deixar as tristezas de lado. O que acha de se casar com o vestido da mãe de Mário Sérgio? Olhe a foto.
A velha apontou uma fotografia dos pais de Mário Sérgio, pendurada na parede. Também se lembrava pouco dele. O homem falecera poucos meses depois da morte da jovem esposa. Ele era o retrato de Mário Sérgio. Era verdade. A mãe do moço tinha algumas características de Clarice. A mesma estatura. Os olhos e cabelos negros. Um cabelo liso e comprido. Tal qual o de Clarice, mas as semelhanças paravam por aí. O vestido era mesmo lindo. Imaginou-se numa foto igual com Mário Sérgio. Como seria a vida dos dois casados?
Eles nunca haviam falado em casamento antes. Até porque se conheciam há muito tempo. Toda a vida dos dois. Mas começaram a namorar há bem pouco tempo. Era cedo para se falar em compromissos.
_  O vestido é mesmo bonito. Mas é muito cedo para falarmos disso. Que tal provarmos as roupas que mamãe mandou? Será que ficaram de seu gosto?
_ Está bem. _ Disse a senhora. _ As roupas que sua mãe põe as mãos sempre saem boas.
Clarice desviara o assunto de propósito. Não gostava de vestir roupas dos outros. Ainda mais as roupas de um defunto. Não se sentiria bem com aquilo. Só se casa com um vestido de noiva uma única vez. Não era justo que se casasse com o vestido de outra pessoa. Ainda mais sendo sua mãe uma ótima costureira. Isso não tinha o menor cabimento. Se na família de dona Efigênia era tradição usarem o vestido uma das outras, na sua família era tradição a mãe confeccionar os vestidos. Fizera os das primas, o de Ana e Laurinha. Lembra-se de quanto trabalho dera para bordar o vestido de Ana, a primeira filha a ser casar. Lembrava-se das tias e primas conversando enquanto faziam o bordado. Não era justo que Clarice não tivesse o seu. Dona Efigênia que a desculpasse. Em se tratando de tradição, cada família tinha a sua. Se viesse mesmo a se casar com Mário Sérgio um dia, certamente não seria o vestido de sua finada mãe. Sabia que o rapaz entenderia. Quem vive de passado é museu.





Ela e Mário Sérgio passeavam de mãos dadas. A noite estava fresca. Resolveram tomar um sorvete na praça.
_ Vovó disse que lhe mostrou o vestido de mamãe._ Ele comentou de repente._ O que achou?
_ Bonito.
_ Quanta animação. Então não quer usar o vestido de mamãe?
_ E por que eu usaria o vestido de sua mãe, Mário Sérgio?
_ É tradição na minha família.
_ Isso quer dizer que vamos nos casar?
_ Só você não sabia disso.
_ Bem, os pedidos de casamento costumam precederem aos preparativos para o mesmo.
Mário Sérgio deu uma gargalhada.
_ É verdade, Clarice. O tempo está passando. Não acha que já é hora de me pedir em casamento?
_ Não acredito! Você só pode estar brincando.
_ Vai pedir ou não vai?
_ Era só o que faltava. _ Disse Clarice ofendida.
Às vezes Mário Sérgio exagerava naquela posição de dono do mundo.
Ele riu e a abraçou.
_ Está bem, Clarice. Eu dispenso o pedido de casamento e me caso com você assim mesmo.
_ E quem disse que quero me casar com você?
_ Seus olhos estão dizendo.
E a beijou em seguida. Queria empurrá-lo de lhe dizer meia dúzia de ofensas. Mas quando Mário Sérgio a beijava, perdia a noção de tudo. Não se animava brigar com ele. Pra que brigar se beijar Mário Sérgio era tão bom. E ele tinha razão. Queria mesmo se casar com ele, mas não com o vestido de sua mãe.







Mário Sérgio fez o pedido na semana seguinte. Não era bem uma festa de noivado. Clarice achava muito feio festas de noivado. As pessoas comparecem. Fazem uma festa e quando o noivado acaba, ficasse com cara de pastel diante de todos que compareceram.
Mário Sérgio bem que podia mudar de ideia. Aceitava as coisas muito facilmente. Aceitara que Clarice estava apaixonada por ele e começaram a namorar. Aceitara a sugestão de casamento da família e lá estava ele. Com Dona Efigênia e Duca à tira colo, diante dos pais e irmãos de Clarice para fazer o pedido. E se alguém lhe viesse com a sugestão de que Clarice não era moça para ele, que ele poderia arranjar alguém melhor? Clarice passaria uma vergonha daquelas.
No começo fora apenas uma ideia quase absurda, mas agora queria mesmo aquele rapaz. Como seria sua vida sem a presença de Mário Sérgio? Amava aquele homem. Não tinha como mudar. Se ele aceitava se casar com ela, quem era ela para recusar?
Eles seriam felizes. Lutaria por isso. Mário Sérgio não haveria de se arrepender de casar com ela.
Clarice pensou que ele estaria nervoso, como os cunhados estiveram para fazer o pedido das irmãs. Qual nada. Não suou frio, não estava com as mãos tremendo. Não gaguejou como Tobias, no dia em que pedira a mão de Laurinha. Apenas perguntou em alto e bom som.
_ Seu Aroldo, me concede a mão de Clarice em casamento?
Simples assim. O pai disse que sim. A mãe respirou aliviada. Clarice não ia ficar para tia. Eles trocaram as alianças e foram jantar.
Na hora de dormir, Clarice passou a mão na grossa aliança de ouro em sua mão direita. Era como se aquilo tudo fosse um sonho do qual de repente fosse acordar.
No outro dia teve logo cedo que ir ao armarinho. A filha de Dona Filó a atendeu.
_ Como vai?
_ Bem e você? Não me parece com a cara muito boa.
Então percebeu a grossa aliança no dedo de Clarice.
_ Então está noiva? Conseguiu laçar Mário Sérgio? Não era para estar com uma cara mais alegre?
_ Estou alegre. O que conta de novo? _ Perguntou Clarice querendo mudar de assunto.
_ Nada em especial. Ah, hoje vi o Nelson.
_ Não conheço. Quem é?
_ Não é de sua época. Ele vem poucas vezes aqui. Quando era jovem, fazia o maior sucesso com as meninas.
_ Inclusive com você, não é mesmo?
_ Adivinhou. _ Disse a outra entre risos. _ Eu era a sua mais franca admiradora. O engraçado é que ainda hoje, todas as vezes em que o vejo, não há um só dia em que não preste atenção. É muito engraçado. Eu nunca penso nele.
_ Deve ser verdade. Você nunca me falou dele.
_ Eu já não vejo mais beleza, ainda que ele não tenha envelhecido em mais de vinte anos.
_ Mais de vinte anos?!
_ Isso mesmo. E ele ainda é bem mais velho do que eu.
_ Então já deve estar pra lá de Bagdá.
_ Vou fingir que não ouvi isto, ta, Clarice? Mas nem em sombra ele parece ter a idade que tem.
_ Ele paquerava você?
_ Que nada. Ele é uma daquelas pessoas que fizeram parte da minha vida, ainda que eu não tenha feito parte da vida delas.
_ Entendo.
_ A gente vê que o tempo passou, que as pessoas envelheceram. Que a beleza que a gente via, só existiu mesmo em nossas cabeças. Que elas são pessoas comuns, como eu.
_ É verdade.
_ Mas mesmo assim, se agente passa por eles, vai lembrar. Assim como levamos um choque quando vemos amigos que costumávamos ver todos os dias e que agora sumiram de nossas vistas. 






Não podia fazer aquilo com Mário Sérgio. As coisas estavam correndo depressa demais. Ele tinha o direito de se apaixonar de verdade. Era tão decidido em tantas coisas. Era o homem da casa no casarão. Assumira a mercearia. Fazia o que bem entendia. Não tremera nem diante de seu pai para fazer o pedido. Por que se deixava carregar para o altar como um manso cordeirinho? Se procurasse bem, havia de encontrar alguém melhor do que ela.
Amava Mário Sérgio demais para vê-lo sofrer um dia. Queria que ele descobrisse o amor assim como ela descobrira. Como pode se apaixonar por Mário Sérgio daquela maneira? Achava que isso não era possível. Se ainda tivesse uma quedinha por ele antes. Mas nada! Nem mesmo o achava simpático. Como poderia amá-lo agora?
Como entrara nesta situação? Por que de uma hora para outra Mário Sérgio se tornara o centro de sua atenção? Tinha quase certeza que ele não sentia o mesmo por ela. Os homens sentem diferente. Precisava acabar com tudo aquilo. Antes que ele acabasse.
De uma hora para outra Mário Sérgio poderia acordar e ver a grande encrenca na qual estava se metendo. E Clarice iria morrer de vergonha. Aí é que ficaria para tia mesmo. Todos iriam caçoar dela pela cidade. Por que não ficara quieta em seu canto?  Agora estava tudo perdido. Amanhã mesmo iria falar com o rapaz. Não podia mais protelar aquela decisão. Quanto mais cedo fosse, melhor.
Teve que trocar o guarda roupa de lugar. Teve que desmonta-lo inteiro. Mais essa! Estava cheio de cupim e estava tombando. Já era tarde e Clarice não estava com ânimo de dormir, ainda que estivesse cansada.
Estava meio irritada, não sabia por que. Sabia sim. Toda aquela situação mal resolvida com Mário Sérgio. Estava até com um pouco de dor de cabeça. O melhor que fazia era dormir.




No outro dia recebeu Mário Sérgio no portão. Não queria que ninguém ouvisse o que ia fazer. Não pediu conselho a ninguém. Todos certamente iriam dizer que ela estava louca.
_ Oi, namorada.  _ Ele a abraçou. Mas Clarice não teve foras para corresponder ao abraço. Tinha vontade de chorar. De sair correndo dali. Não suportava a ideia de perdê-lo.
_ Oi. _ Disse Clarice num fio de voz.
_ O que você tem? _ Ele perguntou preocupado.
_ Preciso te falar uma coisa muito importante.
_ Já sei. _ Ele sorriu aliviado. _ Você não quer se casar com o vestido da mamãe. Não tem a menor importância, Clarice. Faça o que você quiser.
_ Não é nada disso, Mário Sérgio. Não vai haver casamento nenhum. Quero desmanchar com você.
_ O que você está dizendo? _ Perguntou o rapaz espantado.
_ Isso mesmo que você ouviu. Quero desmanchar.
_ Como assim desmanchar, Clarice? Nós vamos nos casar, lembra? O que deu em você?
_ Está tudo errado. Não vai dar certo.
_ Como não vai dar certo? Por que está pensando isso agora?_ Ele balançava a cabeça como se não conseguisse entender o que Clarice estava dizendo.
_ Nossa relação não tem futuro.
_ Futuro?_ Ele lhe enviou um olhar de desprezo que jamais vira. _ Então você pensou bem e decidiu que não sou bom o suficiente pra você. Um cara que trabalha numa mercearia que não é sua. Que vive numa casa que não é sua. Alguém que nunca saiu desse lugar.
_ Não é nada disso.
_ Claro que é Clarice. Minha vida estava muito boa. Não tinha falta de nada. Você sabia que eu era assim. Por que inventou essa coisa de namorico, então?
_ Eu que inventei, não foi? Foi eu quem pediu pra namorar com você? O que você quer da vida Mário Sérgio? Tudo na vida sempre caiu no seu colo. Até eu. Uma moça quer você. A cidade manda você ficar com ela e você fica. Sua família manda você se casar e você se casa. Tão simples assim. Você nunca teve que lutar por nada.
_ Então você quer que eu lute por você?
_ Não precisa, não é? Foi tão fácil. Você nem teve mesmo que estender sua mão. Estava lá, tão fácil.
_ Não comesse a procurar chifres em cabeça de cavalo. Não quer, pronto. Está livre.
Livre. Simples assim. Ele se virou e se foi.
Clarice ficou parada no portão vendo-o ir embora. Ele nem ao menos olhou para trás. Talvez estivesse mesmo aliviado. Em nenhuma momento pediu para que ela reconsiderasse. Ela tinha toda razão, Mário Sérgio não a amava.
Ficou por um longo tempo no portão. As lágrimas rolavam. Não queria que sua família visse que estava sofrendo. Estava tudo acabado. Finalmente acordara do sonho. Mário Sérgio voltava a ser o ex-colega de classe. O rapaz da mercearia.
Como seria agora encará-lo depois do acontecido. Será que conseguiria esquecê-lo? O que as pessoas iriam dizer agora?
Que importavam as pessoas? Não podia levar um inocente para forca por um simples capricho. Mas seria capricho todo aquele amor que agora sentia por Mário Sérgio? Sabia que não. Mas não podia sacrificar a felicidade de alguém pela sua própria felicidade.
Também não sabia se poderia ser feliz amando sem ser amada. Isso era duro para qualquer mulher. Daria tempo ao tempo. Quem sabe com o tempo conseguiria curar essa ferida. Tudo passa. Essa dor também haveria de passar.
Um garoto subiu no muro em busca de uma pipa que voara.
_ Desça daí, menino. _ Clarice ralhou com ele.
_ Vá caçar uma lavagem de roupa. _ Gritou o menino pulando na calçada já com a pipa na mão.
Que raiva do guri. Como se não bastasse o que estava passando. Correu para o portão e disse poucas e boas para o garoto que já ia longe e pouco ou nada devia ter escutado. Estava agastada, pronto! Não tinha mais o que fazer. Desconcertara-se. Perdera o rumo!
Assim era Clarice. Em situações em que perdia o controle, ficava como um peixe fora d’água. Para ela, era sempre necessário manter sempre bem segura as rédeas do mundo. Se não conseguia, o que quase sempre acontecia, ficava com um sentimento ruim.
Estava com este sentimento agora. Descontrola-se por nada! Que tinha um menino destes para lhe deixar tão fora de controle? E então já não sabia se fizera certo ou errado. Mas já estava feito.
Sentiu cansaço, fome. Teve até mesmo vontade de chorar. Talvez levasse um tempo para que tudo voltasse ao controle. Talvez não. Que importava? Precisava relaxar. Não adiantava dar murros em ponta de faca.

 


Quantas saudades tinha dele agora. Rompera porque fora o melhor. Não suportava a ideia de Mário Sérgio se casar com ela porque já era hora de constituir família. Por pressão da família. Por pressão da sociedade. Ela mesma não pensava o mesmo? Não quisera ficar pra tia e escolhera o primeiro que lhe viera à mão: Mário Sérgio. Mas isso fora antes de se apaixonar por ele.
Por que se deixara levar pela paixão? Aquilo era coisa de livros, filmes. Não na vida real. A vida real era feita de pessoas comuns e Mário Sérgio era comum. Isso até ela se apaixonar por ele. Então ele deixara de se tornar comum para se tornar Mário Sérgio. Mário Sérgio! Mário Sérgio! Tinha que deixar de pensar nele. Tinha que se concentrar em outras coisas. Tinha que se concentrar na realidade.
Mário Sérgio não a amava. Esta era a realidade. Estava tão bem sem ele. Por que fora inventar tudo aquilo? Por que não escolhera outro? Tantos rapazes que viviam a lhe dar trela e escolhera justo o que não lhe dava trela nenhuma. As mulheres gostam mesmo de sofrer.
Fizera o certo. Botara um ponto final naquilo e agora estava tudo acabado. Era melhor assim. Por que colocara a ideia fixa na cabeça de que iria se casar? Fora a partir daí que tudo começara. Agora estava acabado. Iria retomar sua vidinha habitual, onde tudo era mais fácil, mais cômodo.
Só não esperava um dia se deparar com uma mulher de meia idade no espelho. Sozinha, amarga, sem nada. E Mário Sérgio? Por onde andaria? Certamente iria se casar logo. Não era do tipo que esquenta lugar. Logo arranjaria outra para tomar o seu lugar.
O seu lugar. Por acaso tinha algum lugar na vida do rapaz? Não fora por isso que terminara com ela? Por achar que não a amava o suficiente? Amar o suficiente? Quando fora que ele lhe demonstrara algum amor? Simplesmente aceitara o seu cortejo e deixara para a vida se encarregar do resto. O seu cortejo sim. Não era do tipo que mente para si mesma. Fora ela quem começara tudo e Mário Sérgio tinha razão.
Quisera se casar e Mário Sérgio fora o escolhido. E aqui estava ela. Apaixonada. Apaixonada sim e não havia como negar. O que no princípio parecia muito simples para ela, agora estava um angu de caroço. Apaixonada por um homem que parecia não ter coração. Não tinha coração mesmo! Por que não se rebelara? Por que não a rejeitara? Bastou que Clarice mostrasse algum interesse por ele... Algum interesse? Era falsa modéstia. Estava com os quatro pneus arriados por ele e todo mundo percebeu.
No entanto, ele podia ter lutado contra aquilo. Não precisava se casar com ela. Podia muito bem esperar o grande amor de sua vida. Aquilo chegava doer em seu peito. Ver algum dia Mário Sérgio de mãos dadas com outra mulher pela rua. Nesse dia sabia que iria sofrer muito. Ou talvez não! Quem sabe já não teria o esquecido? Ou que talvez amasse outra pessoa também? Alguém que a amasse como ela amava Mário Sérgio.
Não queria mais saber de amores. Aquilo era muito complicado. Devia levar uma vida mais simples. Essa coisa de amor não era para ela. A felicidade está dentro de nós mesmos. Basta sabermos procurá-la. Mas por um pouco de tempo fora feliz com Mário Sérgio. Chegara a imaginar uma vida a dois com ele. Uma vida simples, sem complicações. Assim como era Mário Sérgio. Um homem simples, sem ambições, que achava que tinha o rei na barriga. Conclusão: era um homem que não precisava de nada, porque já achava que tinha tudo.
Como gostaria de ser assim. Não almejar nada na vida e assim viver feliz para sempre. Mas lá estava aquela ambição lhe roendo sempre. Algo que a puxava para cima e ao mesmo tempo a empurrava para baixo. Desejo de ser mais e resignação de ser menos. Era como se andasse, andasse e nunca conseguisse chegar a lugar algum.
De que adiantava ter tantas ambições se não tinha fibras o suficiente para lutar por algo mais? Queria tanto e achava que não tinha nada e ao passo que Mário Sérgio não queria quase nada e achava que tinha tudo. Era ele quem sabia viver.
Nesse momento, tudo que desejava era caminhar pela praça de mãos dadas com Mário Sérgio e nada mais. Mas nem isso tinha agora, porque queria sempre mais. Não quisera Mário Sérgio? Ele estava com ela. Não quisera se casar? Ele se casaria com ela. Mas quisera mais. Quisera que lhe devotasse amor profundo. Mas o que era profundo na vida do moço? Quisera mais do que ele poderia lhe dar. Ele lhe oferecera sua mão. Ou será que simplesmente aceitara segurar a sua? Ele nunca precisava pedir nada porque as coisas pareciam lhe cair nas mãos, como ela. Não movera uma palha para conquistar Clarice. Fora ela quem fizera todo o serviço .
Mas que homem precisa conquistar alguma mulher? É ela quem sinaliza e se deixa conquistar. Mas nem isso Mário Sérgio precisara fazer. Clarice fora lhe enviada simplesmente como uma encomenda que chega grátis, sem nenhum aviso prévio pelo correio. A pessoa recebe e até fica feliz porque é de graça, mas logo perde o interesse porque não havia pedido nada e não gastara nada. Então deixa pra lá, encostado, com pena de jogar fora porque algum dia pode até ser que seja útil. Não queria mesmo este papel na vida de Mario Sérgio. Não fora isso que sempre quisera da vida.





_ Mamãe disse que você estava aqui. _ Disse Laurinha entrando no quarto de costura.
_ Estou chuleando algumas roupas para mamãe.
_ Você parece pálida. Não adianta ficar se escondendo dentro de casa. Por que vocês desmancharam.
Clarice tinha vergonha. Não queria que Laurinha soubesse que ela havia se oferecido a Mário Sérgio e que agora se arrependera por achar que ele não a amava.
_ Não quero falar sobre isso, Laurinha.
_ O que ele te fez?
As lágrimas encheram os olhos de Clarice. Virou o rosto para que Laurinha não visse.
_ Nada, Laurinha.
_ Ninguém termina por nada, Clarice. O que Mário Sérgio fez para magoar você?
_  Mário Sérgio não me magoou, Laurinha.
_ Ele não magoou você?! E então por que você está chorando desse jeito.
_ Pare com isso, Laurinha. Me deixe em paz!
_ Tem a ver com a família dele? Eles falaram alguma coisa pra você?
_ A família dele não me disse nada, Laurinha! O que eles teriam pra dizer?
_ Uma filha de mamãe casando-se com alguém que mora no casarão? _ Perguntou Laurinha com certa ironia.
Clarice sentiu um aperto no coração. Também pensava que a família de Mário Sérgio acharia que ela não era moça para se casar com ele. Mas eles não falaram nada. Muito pelo contrário. Foram eles que deram a ideia do casamento. E Mário Sérgio aceitara. Aceitara sim, mas não era ideia dele. Aceitava tudo, mas não a amava. E se um belo dia acordasse e visse que cometera o maior erro de sua vida. Como ela ficaria quando esse dia acontecesse? Antes que o mal cresça, cortasse-lhe  a cabeça.
_  Deixe de bobagens, Laurinha. A família de Mário Sérgio não tem nada a ver com isso.
_ Nunca entendi bem esse namoro de vocês. Você nunca me disse que gostava de Mário Sérgio.
_ Eu não gostava até pouco tempo.
_ Esta história é muito esquisita, Clarice. Você e Mário Sérgio nem combinam. Se queria dar o golpe do baú, mirou errado. Mário Sérgio não tem nada de seu. Aquela mercearia na qual ele trabalha que nem um burro de carga com o Chiquinho é da avó dele. Seu pai não lhe deixou nem ao menos uma casa, Clarice. Ele mora de favor na casa da avó.
_ Você está sendo muito cruel, Laurinha. Comigo e com Mário Sérgio.
_ Ta certo que ele tem uma certa posição. Afinal, é um morador do casarão. Mas fora a posição, não sei o que mais Mário Sérgio tem a oferecer.
_ Você acha que sou uma interesseira, Laurinha?
_ Interesseira, não. Por certo uma interesseira não se casaria com Mário Sérgio. Mas sei lá. Você sempre teve o nariz muito em pé, Clarice.  Mário Sérgio não tem dinheiro, mas tem nome e posição e se você se casar com ele, vai fazer parte daquela família. É, talvez eu esteja errada. Talvez você combine mesmo com Mário Sérgio.
_ Não sei de onde sai tanta asneira, Laurinha. Não pense porque é casada e tem uma filha, que é mais adulta que eu.
_ Eu não disse que era, mas não sou nenhuma medrosa.
_ Medrosa, eu?
_ Isso mesmo! Talvez Mário Sérgio não tenha mesmo feito nada. Quem sabe não é você que não está coragem de enfrentar a realidade. Está na hora de crescer. Tomar conta de sua própria vida. Encarar suas responsabilidades.
Laurinha não podia mesmo entender. Talvez Laurinha não fosse tão criança quanto pensava. Tudo que dissera tinha muito de verdade. Mas o que fazer? Talvez tivesse mesmo o nariz empinado. Clarice era muito orgulhosa. Tão orgulhosa que não aceitaria se casar com um homem que não a amasse. No princípio fora muito fácil decidir que podia se casar com Mário Sérgio. Tudo isso fora muito simples até que se apaixonara por ele. E quando o amor chegara, Clarice entendeu que não poderia vivê-lo pela metade.
_ Tudo bem, Laurinha. _ Ela disse para a irmã. _ Reconheço sua preocupação. Estou um pouco triste, sim. Toda ruptura causa algum tipo de mágoa. Mas Mário Sérgio não me fez nada. Apenas percebi que talvez não tenhamos sido feitos um para o outro. Não vai dar certo mesmo. É melhor terminar agora do que depois ficar chorando pelo leite derramado.
_ Você é quem sabe. Só passei aqui para ver como você estava.
_ Obrigada, Laurinha.
_ Não tem de que. Para que servem as irmãs? _ Disse Laurinha lhe dando um beijo na face._ Clarice... _ Disse Laurinha um pouco reticente.
_ O quê? _ Perguntou Clarice.
_ Sendo feito pra você ou não, vejo que você está mesmo apaixonada pelo Mário Sérgio. Só espero que você não tenha feito nada que vá se arrepender depois.
_ Eu sei o que estou fazendo, Laurinha.
_ Está certo. _ Disse a irmã se retirando.
Clarice pegou de novo nas costuras, mas não conseguiu reiniciar o trabalho. Será que sabia mesmo o que estava fazendo? Apaixonado ou não, Mário Sérgio iria se casar co ela. Iria se casar com o homem que amava. O que mais queria da vida?  Sabia a resposta. Queria que ele a amasse também.

Estava estendendo as roupas no varal. Estava há quase uma semana sem sair de casa. Tinha medo de cruzar com Mário Sérgio.
Ele não a procurara. Devia estar bem feliz da vida. Ela já não tinha mais o que chorar. Ao se abaixar para retirar uma peça de roupa da bacia deu com Mário Sérgio, que a observava em silêncio. Não o vira se aproximar.
_ Por que está aqui?_ Perguntou Clarice, passando instintivamente as mãos sobre os cabelos, mal arrumados num coque frouxo. Também não estava com uma de suas melhores roupas. Tanto fazia. Não se importava mais com o que ele pensava sobre sua aparência.
_ Porque acho que devemos conversar.
_ Tudo que havia pra se conversar já foi dito.
_ Você falou o que você queria, eu não.
_ E o que você vai dizer? Que ia se casar comigo porque eu me ofereci pra você? Que te deixei numa situação na cidade que o obrigava a tomar uma atitude?
_ Não. Não voltei por causa da cidade. Voltei porque de repente me peguei imaginando uma criança me abraçando pelas pernas. Uma criança de cabelos negros como os seus. Imaginei-me chegando em casa cansado, depois de um dia de trabalho, com você me recebendo com um sorriso e um abraço apertado. Adoro o seu abraço, Clarice. É um abraço apertado daquele que se dá apenas em quem se ama. Sinto falta do seu abraço, Clarice. Sinto a sua falta. 
Ele sentia a sua falta. Era tudo. Ele não a amava. Não queria e não podia aceitar isso.
_ Você pode arranjar outra.
_ Arranjar outra, Clarice?_ Disse o rapaz exasperado. _ É tudo o que tem a dizer? Como pode brincar assim com os sentimentos de um homem? Por que você me abandonou, Clarice? Era tudo uma brincadeira?
Olhou nos olhos de Mário Sérgio e pela primeira vez notou insegurança. Insegurança? Nunca vira Mário Sérgio inseguro alguma vez na vida.
_ Achei que você havia se precipitado. Acho que ainda pode encontrar alguém que você ame de verdade. Não tem a obrigação de se casar comigo.
_ Quem falou em obrigação, Clarice? Você vive inventando coisas! Por que não diz logo que cansou da brincadeira e pronto?
_ Eu nunca estive brincando!
_ Nem eu.
_ Não posso me casar com um homem que não me ama.
_ E quem disse que não amo você?
_ Você nunca disse.
_ Era preciso dizer?
_ Sempre é preciso.
_ Você nunca disse.
Realmente nunca dissera. E era preciso? Toda cidade sabia. Fora por isso que o namoro iniciara.
_ E era preciso dizer? Todo mundo sabia.
_ Você nunca disse. _ Ele repetiu.
Ele tinha razão. Mas não é a mulher quem deve dizer primeiro. Nunca! Os homens deviam dizer primeiro. E se ela dissesse que o amava e ele não lhe dissesse que a amava também? Morreria de vergonha. Além do mais, nunca percebera nenhum indício de amor da parte de Mário Sérgio. Se falasse que o amava, podia deixá-lo encabulado. Poderia mesmo perdê-lo.
_ Como poderia dizer que o amava? É o homem quem deve dizer que ama primeiro.
_ Quem disse isso?
_ Ora,  Mário Sérgio, todos sabem disso. E se eu dissesse que te amava e você não me dissesse que me amava também?
_ E se eu dissesse que te amava e você não me dissesse que me amava também? _ Ele repetiu a pergunta.
_ Era um risco que você deveria correr.
_ Por quê?
_ Porque os homens sempre fazem isso. São eles que fazem tudo. Eles escolhem as moças, as cortejam, as pedem em namoro e depois em casamento._ De repente Clarice caiu em si. _ Menos você, não é, Mário Sérgio? Parece que tudo foi bem mais fácil pra você. Uma moça te escolheu. A cidade inteira deu força para o namoro. Sua família decidiu o casamento. Não restou mesmo nada para você fazer.
_ Restou sim.
_ O que restou pra você?
Lágrimas verteram dos olhos de Clarice. Estava tão envergonhada. Fora ela e somente ela a culpada de toda aquela situação.
Ele enxugou as lágrimas que corriam de seu rosto.
_ O principal: amar você.
_Não precisa ficar com pena de mim. Não precisa dizer que me ama só porque está com pena de mim.
_ Pare de complicar as coisas, Clarice. Por que acha que não posso amá-la?
_ Foi tudo tão de repente. Nós nos conhecemos a vida inteira. Nunca houve nenhum interesse, nem na infância, nem na adolescência. Como poderia estar me amando agora?
_ Da mesma forma como você de repente se apaixonou por mim. Vamos, Clarice, deixe de ser turrona. Diga logo que me ama perdidamente, que não pode mais viver sem mim e que está desesperada para se casar comigo.
Aquilo era bem de Mário Sérgio, mas ela merecia. Sabia bem quem ele era, mais pedante impossível e mesmo assim o escolhera para amar. Ele tinha toda razão, fora ela quem começara com tudo aquilo. Brincou com fogo e acabou queimada. Ela merecia aquilo. Estava mesmo desesperada para se casar com ele.
  _ Mário Sérgio, eu te amo perdidamente e não posso mais viver sem você. Eu estou desesperada para me casar com você.
_ Boa garota! Fez a lição de casa direitinho. _ Ele falou enquanto a tomava nos braços.
_ Eu sempre fui melhor na escola do que você.
Ele riu e a beijou.
_ Amo você, Clarice.
_ Eu também te amo, Mário Sérgio.






Fim


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