De repente
A caminhada
foi longa e o sol esquentou bastante. Clarice abriu a sombrinha. O cesto com as
roupas pesava. O suor escorria pelo rosto e empapava-lhe a roupa.
“Uma
mulher não deve suar em público.” Pensou. Mas como não suar debaixo de um
sol tão escaldante?
Tomara um
banho. Passara perfume. Onde estava o fresco aroma de lavanda? Há muito se
fora. Clarice se sentia desconfortável.
Entrou na
casa de dona Efigênia. O velho portão do casarão dos Magalhães rangeu. Sempre
fora imponente, não se parecia em nada com as casas simples do lugar. A pequena
escada de pedras, a grande varanda que fazia volta por toda a casa. Era pintado
de branco, com antigas portas e grandes janelas azuis, agora já um tanto
desbotadas, mas ainda assim o casarão emanava uma certa dose de austeridade.
Dona Duca, a empregada de tantos anos, olhou pela janela.
_ Clarice?
É “ocê”?_ Talvez a velha já não enxergasse tão bem. Gostava da velha mulata,
sempre tão boa com as crianças.
_ Sou eu,
dona Duca._ Gritou Clarice, do portão, mas já do lado de dentro do grande
quintal. _ Trouxe as costuras que dona Efigênia mandou pra mamãe fazer uns
reparos.
_ Pode
entrar, “fia”.
Clarice foi
para a porta dos fundos. A porta da frente raramente era aberta. Apenas em dias
de visitas muito ilustres. Clarice nunca passara por ela. Admirou as margaridas
plantadas no jardim tão bem cuidado. Dona Efigênia amava as plantas.
Dona Duca a
recebeu pela porta da cozinha.
_ Dona
Efigênia esta no galinheiro._ Declarou a velha empregada. _ Foi dar uma olhada
na criação. Senta um pouco e descansa. O sol tá muito quente.
E estava
mesmo. Clarice suava em bicas. A moça sentou-se num banco na cozinha.
_Quer um
refresco? Já almoçou? _ A velha perguntou.
_ Já sim,
senhora. _ Respondeu a moça um pouco constrangida.
_ Toma o
refresco, então. É de graviola.
_ Não,
obrigada.
Clarice
estava com a boca seca, mas não aceitava. O orgulho sempre vinha em primeiro
lugar. Não gostava de aceitar o que era dos outros.
_ Não quer
um copo d’água?
_ Aceito
sim, senhora. _ Clarice disse.
Água podia
aceitar. “Água não se nega a ninguém.”. A mãe sempre dizia. Então água Clarice
aceitava. Aceitava sim. Mas nunca pedia.
Bebeu a
água em grandes goles.
_ Quem está aí, Duca? _ Perguntou
dona Efigênia, lá de fora.
_ É a Clarice de dona Amália.
Clarice, de dona Amália. Era
engraçado aquilo. Como as pessoas pertenciam umas as outras. Clarice pertencia
a sua mãe.
_ Já trouxe
as roupas, Clarice?_ A senhora perguntou enquanto entrava na cozinha.
_ Sim.
Mamãe pediu para que a senhora provasse. Trouxe os alfinetes para marcar as
costuras.
_ Está bem,
filha. Vamos até o quarto.
Clarice
seguiu a senhora pelo corredor comprido. Poucas vezes entrara naquela casa.
Podia lembrar do cheiro. Era o mesmo que sentia agora.
Era engraçado
como cada casa tinha o seu cheiro.Clarice conhecia o cheiro de cada uma delas.
Uns bons, outros ruins, alguns apenas diferentes. Como o cheiro da casa de dona
Efigênia. A única casa que Clarice não conhecia o cheiro era a sua. Por muito
tempo achara que sua casa não tinha cheiro. Mas era certo que tinha. Apenas
seus moradores não conseguiam distinguir.Um dia, Niltinho, seu sobrinho,
dissera: “Cheiro da casa da vovó!” Clarice gostaria muito de saber que cheiro
era aquele.
Dona
Efigênia abriu a porta e a fechou atrás de Clarice. Estava na hora da prova. A
moça passou os olhos pelo aposento. A cama alta e antiga. A prateleira cheia de
perfumes, bibelôs e porta retratos. Clarice deu com um retrato de Olavinho.
Fazia muito tempo que não o via.
Costumava vir
sempre à casa da avó, em dias de sábados e domingos. Olavinho era tão bonito.
Seu nome era música para os ouvidos de Clarice.
O menino
nunca lhe dera a mínima atenção. Garoto rico, bonito. Menino da cidade. Era
claro, de cabelos escuros. Sua imagem jamais saíra da cabeça de Clarice. Mas
não conseguia lembrar de quando o vira pela última vez.
Lembrava de
Olavinho quando criança, brincando na rua com os demais meninos. Lembrava de
uma vez em que a tia o levara a uma festa de uma criança da vizinhança. Olavinho
estava sozinho, um pouco deslocado, já entrando na adolescência. Daí pra frente
não se lembrava se o vira outra vez. Tantos anos se passaram.
_ Senta,
filha. _ Disse dona Efigênia. _ Tua mãe
tá boa?
_ Está sim,
senhora. Mandou que eu marcasse as costuras, se não estiver do seu gosto.
_ Vai ficar
no ofício de tua mãe? Costura também?
Clarice
corou. Não nascera para aquilo. Estar servindo em casa dos outros. Arrumando
mesas, costurando. Não fazia diferença.
Queria ter sua própria casa. Sair
da subserviência. Queria ter sua mesa de jantar. Sua casa com flores na
varanda. Seus retratos na parede. Um marido que ganhasse o suficiente para que
ela não precisasse servir nas casas dos outros. Mas já estava com quase vinte e
cinco anos e nada.
E se ficasse
para tia? Não contara nunca com isso. Mas essas coisas aconteciam. Então tinha
que ter o seu próprio ofício. Mulheres que não tem marido, tem que se
sustentar. Quando jovem queria ser professora, mas os pais não tinham condições
de mandarem-na para o curso normal.
Ser
professora era melhor do que ser costureira ou servir nas casas dos outros. Mas
entre ser costureira e servir, preferia a primeira opção. Era orgulhosa demais
para servir numa casa.
E se
ficasse para tia? Ia ter que ser uma agregada. Em casa de um parente ou até
mesmo uma pessoa de fora. Isso Clarice não podia suportar. Havia de ser
costureira. Era melhor do que morrer de fome ou viver encostada na casa dos
outros. Dependendo da caridade alheia.
_ Ajudo
mamãe com algumas costuras. Não tinha pensado em seguir o ofício. Mas é bom que
toda mulher saiba costurar, bordar, lavar, passar e cozinhar, se quiser ser uma
boa dona de casa. Mas posso me tornar uma costureira também. Deus é quem sabe.
As costuras
caíram bem em dona Efigênia. Não precisou de nenhum reparo. A senhora lhe
entregou o dinheiro e Clarice o guardou depressa. Como se lhe queimasse a mão.
Tinha vergonha de receber dinheiro dos outros.
O dinheiro sempre
fora um problema para Clarice. Sabia que as coisas eram apertadas em casa. Enquanto
Lourdes e Laurinha viviam pedindo dinheiro aos pais para comprarem fitas,
rendas e doces, Clarice nunca pedia nada. Recebia o que lhe vinha às mãos e
agradecia. Mas nunca pedia nada.
Lourdes, a mais velha, já se
casara. Laurinha, a mais nova que ela, casara-se também. Só ficara ela e Marcos
em casa. Mas Marcos era o caçula. Em breve casava também e ela ficaria só com
os pais em casa.
Despediu-se de dona Efigênia. Ao
passar pela cozinha, deu com Mário Sérgio, que almoçava, antes de voltar para a
mercearia. Já era tão tarde, pobrezinho.
A vida de Mário Sérgio também não
era muito fácil. Perdera os pais muito cedo e fora morar com a avó.
Dona Efigênia tinha uma
mercearia, que o marido lhe deixara e que agora estava por conta de Mário
Sérgio. Mas não era seu próprio negócio, era negócio da família. E dona
Efigênia tinha tantos filhos, tantos netos. Todos tiravam bocados da mercearia,
mas só Mário Sérgio trabalhava.
Apenas a família de Olavinho
tinha posses. O pai de Olavinho era um homem rico. Era o que todo mundo
comentava. Clarice não se lembrava do rosto do homem ou qualquer coisa que
estivesse ligada a sua aparência. Só se lembrava que ele tinha posses e mais
nada.
_ Boa tarde, Mário Sérgio.
_ Boa tarde, Clarice. Está
servida?
_ Não, obrigada. Já almocei.
Mário Sérgio e ela tinham
estudado juntos no Grupo Escolar. Ele, um pouco superior, já que era neto da
dona da mercearia. Morador do casarão dos Magalhães. Isto lhe confiava algum
status. Ela, apenas a filha da costureira. Não foram amigos. Apenas colegas de
classe. Mário Sérgio, como os outros meninos, não lhe tinha muito apreço. Mas
não eram inimigos.
O tempo passou e agora já eram adultos. Os
adultos tem uma camada de polidez que não possuem as crianças e adolescentes.
Agora, se cumprimentavam da maneira civilizada e em nada lembravam os tempos de
meninos.
Despediu-se
do rapaz e rumou para casa. O sol castigava. Não lembrava de um verão tão
quente. Como queria que caísse uma chuva.
A bolsa
estava pesada. Quantas roupas Anita mandara para sua mãe consertar? Não se
cansava de tantas roupas? A moça a prendera um pouco para botar a conversa em
dia. Anita tinha muito a dizer de si. Acabou saindo de lá mais tarde do que
deveria. Anita lhe oferecera café com bolo que ela mesma preparara. Clarice não
aceitou. Era muito difícil que Clarice aceitasse qualquer coisa de alguém.
Continuou a
caminhada. O caminho de volta parecia bem mais logo. Tinha fome. Estava
cansada. Os minutos pareciam não passar. Como gostaria de estar em casa agora.
Tomar um café quentinho, comer uns bolinhos de chuva que a mãe certamente
preparara.
A mãe,
sempre tão boa. Fazendo todas as vontades de todo mundo. Um simples desejo, e
se a mãe podia, realizava.”Uma mãe é pra cem filhos e cem filhos não é para uma
mãe.”. Esse ditado se aplicava a sua. Movia terra e céus para abençoar sua
cria. Mãe tão boa. Se um dia fosse mãe, queria ser como a sua. Forte,
guerreira, lutadora.
Será que
teria a mesma força da mãe? Clarice julgava que não. Amava tanto a mãe. Devia
dizer isso pra ela. Quando se ama uma pessoa, a gente diz. Não podemos deixar o
tempo passar.
Era tão
agradecida à mãe. Por tê-la criado com
tanto carinho. Por ter sofrido tanto para criá-la junto com os irmãos. Clarice
sabia disso. Reconhecia o valor da mãe.
Clarice sabia que não era das
mais belas. Os meninos, além de não a elogiarem, ainda a depreciavam. Na
verdade não eram só os meninos. Meninas, e adultos também, faziam isto sem a menor cerimônia. Mas o
tempo passou e Clarice já não se sentia tão feia. Agora era bonita. Era bonita?
Não conseguia entender isso! Encontra-se com uma amiga do Grupo Escolar que não
via há muito e a menina lhe dissera que ela não havia mudado nada. Como? Será
que o padrão de beleza havia mudado? Ou será que os adultos eram mais dóceis do
que adolescentes e crianças? Clarice não tinha respostas.
Clarice
queria tanto que tudo tivesse sido diferente. Queria ter mais dinheiro e muito
mais beleza.
Não queria
seus amigos de volta. Queria
esquecê-los. Não que eles tivessem sido ruins para ela. Ao contrário,
foram ótimos. Mas a amizade dava trabalho. Tem que regar e podar. E quando eles
traem, é muito mais dolorido.
Quantas
vezes Clarice tinha magoado seus amigos? Seus irmãos? Ela não queria magoar
ninguém. Nunca! Queria ser prestativa, doce. Queria ser tudo de bom para todo
mundo. Mas era tão difícil. Sabia que não era perfeita. Nunca seria.
Clarice
estava tão cansada. Tão desanimada. Sua cabeça pesava. Queria dormir. Esquecer,
descansar. Qualquer coisa.
Estava tão
desanimada das pessoas. Parecia que ninguém gostava dela. Olímpio, seu primo,
ficou triste. Clarice também estava triste por ele. Triste por todos eles. Não
queria ir à festa. Ele planejara a festa se sua filha com tanto esmero, e Gina,
a sua esposa, botara tudo a perder. Não estava para festas. Não se trata as
pessoas como se elas fossem lixo. Isso era desleal.
Às vezes
Clarice se perguntava se o problema não era ela. Nós nos achamos pessoas muito
boas, mas talvez não sejamos o que pensamos ser. Não quando quase todo mundo
acha um jeito de nos dar uma rasteira.
Clarice
queria não ser tão sensível a este tipo de coisa. Queria não se sentir mal. Mas
não conseguia. Dava uma vontade de brigar. Soltar os cachorros em cima. Ao
mesmo tempo dava uma vontade de esquecer. Fazer de conta que esse tipo de
pessoa não existe.
Clarice
acabou indo à festa. A mãe e o pai insistiram. Disseram que não ficava bem.
Clarice cedeu. Não valia a pena ficar dando murro em ponta de faca.
Ainda se sentia cansada, porém um
pouco melhor. Hoje era o seu aniversário, estava completando vinte e cinco anos
de idade. Sentia que de todos os aniversários, este era o que se sentia menos
eufórica. Ela não se sentia eufórica, as pessoas não se sentiam eufóricas.
Ninguém a
abraçou e a beijou. Eles cantaram parabéns pra ela em volta da cama. Se alguém
a beijou, não se lembrava, só sabia que estava sonolenta na hora.
Clarice
sabia que vinte e cinco anos só se fazia uma vez na vida, mas ela não conseguia
se animar. Queria estar alegre, contentíssima, mas a euforia não vinha.
Parabéns
pra mim! Ela gostaria de dizer. Gostaria de receber um telegrama de Helena, sua
prima. Talvez ela tenha se esquecido. Pelo menos a Joana, sua vizinha, se
lembrou. De onde não se espera é que sai. Elas foram muito amigas quando
mocinhas, mas agora estavam meio desligadas.
Será que
outros amigos iam lembrar? Parabéns atrasado não tem graça. Mas Laurinha, lhe
deu um presente lindo que Clarice adorou, mesmo que Ana não estivesse ali agora. O que importava é
que ela havia se preocupado.
Não sabia o
por que, mas sempre que fazia aniversário tinha uma decepção e uma alegria.
Lembrou de um aniversário de quando ainda estava na escola. Tinha sido péssimo
no colégio, mas em casa teve uma bela festa. Isso foi o máximo!
Clarice
queria que alguém se lembrasse,mas na verdade, não tinha nem ao menos ânimo
para se arrumar. Em todo caso, o dia ainda não tinha acabado. Talvez ainda
tivesse uma surpresa agradável.
Clarice
pediu para a mãe lhe fazer um bolo. A mãe fez e ela cobriu com um pudim de
chocolate. De noite se arrumou e ela, o pai, a mãe e o irmão cantaram parabéns
e partiram o bolo. Assim o seu aniversário se animou um pouquinho. Clarice
achava que era indispensável um bolo no seu aniversário.
Depois
ouviu as crianças brincando de roda na rua. Lembrou de seus tempos de menina e
adolescente também. Foi no portão para ver. Rosinha estava com as crianças. Já
de namoro e ainda brincava de roda. Deu
vontade de brincar também. Uma mulher de vinte três anos! Que importava,
hoje era seu aniversário, podia fazer o que quisesse, até brincar de roda.
Brincou pra
valer. Divertiu-se. Sempre que fazia aniversário tinha uma decepção e uma
alegria. Brincar de roda foi sua alegria.
Que
felicidade! Dias depois recebeu uma carta de sua prima Catarina. Não podia ser
melhor, pois ela havia ficado triste por não ter recebido nenhuma felicitação
de Helena. Clarice achava que ela havia a esquecido. Em compensação, a carta de
Catarina foi ótima.
Clarice foi fazer umas compras na
mercearia e Mário Sérgio lhe atendeu. Ele estava tão lindo! Clarice achava o
Olavinho tão bonito e o Mario Sérgio sem graça. Mas agora, o Mário Sérgio
estava um broto e o Olavinho tinha mudado. Vira uma foto recente sua.
Como o
mundo dava voltas. Se Clarice tivesse que escolher entre os dois primos,
certamente escolheria o Mário Sérgio. Ela estudara tantos anos com ele. Mas
também, não tinha uma relação muito boa com os meninos de sua classe. Eles a
achavam feia e não tinham nenhum problema em expressar isso. Só tivera paz
quando entrara na adolescência.Mesmo assim, estava longe de ser o que era
agora. O que tinha de diferente agora? Não sabia dizer! Tudo mudara desde que
ganhara os contornos de mulher.
Era certo
que Clarice ainda não conseguia dominar a relação homem/mulher. Sabia que era uma
ótima amiga e uma péssima namorada. Mas ninguém mais andava jogando em sua
cara, e o tempo todo, que ela era feia. Isso era difícil para qualquer ser
humano agüentar, o que dirá para uma menina.
Clarice
ainda não podia acreditar que era bonita, mas sabia que alguma coisa devia ter
mudado. Quando alguém dizia que era bonita, ficava feliz e prontamente
agradecia.
Se tivesse
um pouco mais de dinheiro, daria para se cuidar mais. Parece que a pobreza
atraía a feiúra. O dinheiro abre portas. A beleza abre portas. Mas parece que a
pobreza atrai a feiúra. Clarice não era cega. Sabia que as pessoas eram
atraídas pelo dinheiro e principalmente pela beleza. Não era culpa delas.
Parecia ser uma coisa de seleção natural.
Conforme o
dinheiro vinha, vinha a beleza também. Talvez suas teorias tivessem alguma
base. Não podia saber. Mas sabia que as duas coisas eram difíceis. Não ter
dinheiro e não ter beleza. Mas parecia que a falta de dinheiro não doía tanto
quanto a falta de beleza. E quando alguém te diz: “Você é feio!”. Vai doer e
vai calar fundo. E ainda que o tempo apague. Uma manchinha sempre vai ficar em
você.
Não sabia
por que estava pensando naquelas coisas. Estava com saudades. Saudades de um
tempo que não vivera. Amor de menina.
Olhou para
o horizonte. Céu com nuvens que formavam
figuras que Clarice achava parecidas com sorvetes. Sorvetes sem gosto. Sorvetes
com gosto de água.
Quando era
mocinha, apaixonara-se por um rapaz. Onde estaria ele agora?
O tempo
passa e as coisas mudam, como as nuvens no céu formavam novas figuras. Estava
com saudades dele agora ou estava com saudade dela mesma. Num tempo onde o riso
vinha mais fácil. Um tempo em que a juventude florescia. Assim como Olavinho,
ele não correspondera a seu amor. A diferença era que Olavinho lhe tinha
indiferença. Agora, ou sempre, não era nada em sua mente. Já Luiz, o outro
rapaz, lhe dedicava ao menos uma amizade.
Luiz não
ignorava os sentimentos de Clarice, mas não lhe retribuía da mesma forma.
Apenas lhe devotava um carinho e atenção que Clarice nunca recebera de nenhum
outro antes. Talvez fosse por isso que estivesse com saudade dele agora.
O céu
continuava azul. No entanto, algumas nuvens já estavam cinzas, anunciando chuva
pela qual Clarice ansiava agora.
Onde
estaria Luiz? Por que estava tão melancólica? Por que tanta saudade de Luiz? Ou
seria saudade dela?
Colocou
umas roupas para quarar. Gostava de ter suas roupas sempre clarinhas. Passara
algumas também. Que vontade de comprar roupas novas. Às vezes tinha uma vontade
de ter roupas novinhas, estalando de novas. Cheias de detalhes. Mas eram apenas
sonhos. A realidade era bem diferente. Como investir em roupas novas se
precisava de tantas outras coisas?
Achava que
mesmo que fosse rica, não desperdiçaria seu dinheiro com futilidades.
A trança se
desfizera e o cabelo caía no rosto, atrapalhando-lhe a vista. Que vontade tinha
de tomar um banho no córrego que passava no final da rua. Mas já não era mais
uma menina. Não caía bem para uma moça andar com as roupas molhadas pela rua.
Fechou os olhos
e se imaginou ainda nos tempos de menina. Subindo em árvores, tomando banho no
córrego. Brincando de bonecas com as irmãs. Onde estariam todos agora?
O tempo
corria vertiginosamente. As pessoas entravam e saíam de sua vida. Ainda
conversava com algumas amigas do tempo de infância e adolescência, mas não
tinha nenhuma amiga de outrora. Começava a se sentir só.
E se
ficasse para tia? Não podia admitir. Era vergonha demais para uma mulher. Como
uma laranja murcha, que sobra no final da feira. Precisava casar-se já. Mas com
quem? Todos haviam se casado ou estavam prestes a isso.
_ Clarice.
_ A mãe chamou.
_ Que foi,
mãe?
_ Já te
chamei duas vezes. Está no mundo da lua?
_ São
cismas, mãe.
_ Cisma de
quê?
_ De nada.
O que foi?
_ O açúcar
acabou. Busca na venda pra mãe?
_ Sim,
senhora. Posso tomar um banho antes. Estou suada.
_ Vai,
filha.
Tomou um
banho de um susto e se vestiu a primeira roupa que viu. A mãe tinha pressa.
Chegou na
venda. Mário Sérgio estava no balcão.
_ Boa
tarde, Mário Sérgio.
_ Boa tarde, Clarice.
_ Um quilo de açúcar, por favor.
Põe na conta.
O rapaz parecia cansado. Clarice
sorriu para ele.
_ Cansado? _ Clarice perguntou.
Mário Sérgio fez uma cara de menino.
_ Quero ir pra casa. _ Disse como
se fosse uma criança.
Era isso! Por que não tinha
pensado nisso antes? Não era pobre, nem rico. Não estava abaixo dela, nem
acima. Era jovem, forte, bonito. Homem trabalhador. Havia de se casar com Mário Sérgio!
Não era apaixonada por ele. Mas já não era indiferente. Não o achara lindo
outro dia? Já era um bom começo. Não estava apaixonada. E daí?
O amor vem como tempo. O grande
problema era que Mário Sérgio agora a tratava com educação, sorria para ela.
Coisa mais de comerciante do que de rapaz. Decididamente Mário Sérgio não lhe
devotava nenhum interesse em especial. Mas ela podia mudar isso.
Deu um sorriso pra Mário Sérgio e
despediu-se. Um casamento seria sua próxima empreitada. E Mário Sérgio era o escolhido. “ Se não tem
tu, vai tu mesmo.” Que nenhuma
princesinha escutasse isso. Não podia ficar em casa esperando envelhecer, até
que ficasse no caritó. Ainda era moça, bonita. Podia dar um jeito em sua vida.
Clarice
entrou na mercearia e Mário Sérgio a cumprimento e não houve nada de especial.
Os homens são uns tolos. Não valia a pena mesmo. O que Clarice estava falando?
O que ela queria com o Mário Sérgio? Devia estar desesperada. Mario Sérgio era
apenas um antigo colega de classe e nada mais. Era melhor não pensar mais
nisso.
Não ficava
bem para ela meter-se em maus lençóis. Aquela coisa de romances não era para
ela e muito menos para Mário Sérgio. Não ficava bem para ele. Amigos no Grupo
Escolar. Na rua, não podia se dizer que eram da mesma turma. Mas alguma vezes
chegaram até a brincar em grupo. Meninos gostavam de pipas e bolas de gude.
Brincadeiras das quais as meninas sempre eram barradas. Meninas gostavam de
brincar de casinha e escolinha e nestas brincadeiras os meninos não eram
incluídos. Mas havia aquelas brincadeiras como bandeirnha, queimada e piques.
Nessas todos podiam brincar.
O dia
estava frio e insípido. Saíra da cama. Tinha tantas coisas para resolver e não
resolvera nada. Sentia uma falta de ânimo. Sabia que tinha que reagir, mas não
conseguia. Não gostava de estar naquela situação. Situação de gente fraca que
não tem ânimo nem mesmo para cuidar si.
Como gostaria que o sol abrisse e
pudesse sair caminhando pela rua. Que falta faziam as irmãs. Do tempo que
dormiam todas juntas no mesmo quarto. Ela e Laurinha sempre dormiam juntas. A
menina não desgrudava de Clarice nem por um minuto durante o sono. Várias vezes
Clarice acordava durante a noite para cobrir Laurinha.
Não gostava de dormir com Ana,
que tinha o sono muito agitado. Ana a descobria, colocava o pé por cima dela.
Dormia com Laurinha, um pouquinho mais calma. Mas calma mesmo, sempre fora
Clarice. Sempre quieta, durante o sono ou acordada. Seria por isso que sobrara?
Não demorava muito e o irmão também se casava e então só sobraria Clarice. E a
casa ficaria cada vez mais vazia.
Teve vontade de dormir para que o
tempo passasse mais depressa. Não estava em conformidade com aquele dia. Estava
muito desanimada. Lembrou-se do dia em
que o pai da Rejane faleceu. Achou que aquilo era tão esquisito. Era um homem
ainda novo. Os primos quiseram alegra-la. As demais crianças da rua também.
Tudo parecia muito forçado. Não havia alegria naquela brincadeira. Resolveram
brincar de comidinha. Todos, meninos e meninas. Aquilo não era muito comum.
Estavam mesmo querendo agradar Rejane. Clarice preparou uma salada que lhe pareceu
de bom aspecto, já que era feita de verdura de verdade e não das costumeiras
folhas e barro, que consistiam os “ingredientes” das comidas que preparavam.
Quando
provou a salada, ficou desapontada. O gosto estava horrível. Marcos, um primo
de Rejane tinha colocado uma quantidade soberba de adoçante. Ele riu e Clarice
ficou muito irritada. Também estudavam juntos no Grupo Escolar, mas não eram
exatamente amigos. Não que a irritasse. Marcos não era do tipo que se
incomodava em chatear as meninas. Apenas não eram muito amigos e ponto. Mas se
irritou muito com o menino naquele dia.
Não teria
se importado muito se soubesse que poucos anos mais tarde Marcos também
morreria. Bem mais cedo que o tio. Não chegara a constituir família. Morrera
pouco tempo depois de sair da adolescência.
Não morrera
de um trágico acidente, como costumam ser ceifadas de repente as jovens vidas.
Uma doença grave o acometera e Clarice nem teve tempo de se despedir. Nem mesmo
comparecera ao seu enterro.
Mas por que
pensar nisso agora? Ela estava viva. Não ia querer morrer cedo como Marcos.
Queria viver, fazer grandes coisas. Não aceitava ter uma vida comum, como
qualquer outra pessoa. Queria mais da vida. Não queria que sua vida fosse um
dia cinzento e inanimado como o de hoje. Queria sol, queria vida. Queria que
sua vida fosse um lindo jardim perfumado.
Um jardim
perfumado? Sim, era isso que queria que fosse sua vida. Fechou os olhos.
Imaginou-se numa ponte sobre um lago com várias flores coloridas e perfumadas.
Num tempo que fosse ameno. Nem quente, nem frio. Um termo morno e gostoso.
Daqueles que se tem vontade que dure para sempre. Não queria pensar em morte
agora. Queria apenas viver.
Algumas
pessoas metem-se na vida dos outros por tudo ou por nada. Só a opinião deles é
que conta. São tão senhoras de si que prontamente se põem a dar palpites na
vida dos outros como se só elas fossem donas da verdade. Clarice tinha medo de
ser assim. Sempre fora tão orgulhosa. Será que se achava melhor do que as
outras pessoas?
Estava irritada
com seu bordado. Estava um emaranhado tal que mais parecia uma teia de aranha
muito colorida. Que vontade de o atirar longe, mas Clarice não gostava desse
tipo de arroubo, Coisa de moça fricoteira e isso não podia admitir.
Detestava
fricotes. Moças que desmaiam sem motivo aparente ou que ficam prostradas como
se o céu estivesse caindo sobre suas cabeças. Isso não era coisa pra ela.
Bastava um sol mais forte, que lá estava a mocinha a desmaiar. Clarice se
perguntava o quanto tinha de verdade naquele padecimento.
O calor
estava insuportável O tempo abafado. A chuva que caíra na noite anterior em
nada amainara aquele calor todo.
A morte crucia, verdadeira, sem
pena e sem dó, mais uma vez . Só que dessa vez era mais perto. Ela acabava de
levar o avô de Clarice Quando recebeu a notícia não chorou. Insensível? Não
sabia dizer. Sabia que a morte não era para sempre e que se veriam no Céu. Seu
avô não tinha morrido, o Senhor o tomou pra si.
Adeus, vovô! Adeus!
A tarde
estava findando e Clarice se preparava para ver o corpo de seu avô. Ele era bem
velhinho e já estava ruinzinho. Ficara de cama um bom tempo. Fora internado no
hospital. Seu avozinho estava morto. Clarice estava com vontade de chorar. E
por que não chorava? Ele era seu último avô.
Sempre
velho, mas com uma cabeça boa. Às vezes fazia algumas rabugices, mas tinha a
cabeça boa. Lembrou-se da avó que morrera quando ela era criança. Agora não
tinha mais avós.
Queria dar
adeus a seu avô. Ainda não o vira morto, mas sabia que agora ele estava bem.
Mas Clarice não deixava de sofrer com sua morte. Seu avô não morreu de repente,
por isso ela não teve um impacto com a sua morte, mas sabia que agora estava
tudo acabado. Agora não mais o veria. Veria apenas o seu corpo.
Clarice foi
ver o avô. Seu avô dentro de um caixão. Só aí suas lágrimas vieram. Doía ver no
caixão o seu próprio avô. Sabia que nunca mais se veriam na terra. No outro dia
iriam enterra-lo.
No outro
dia deu seu último adeus ao avô e suas lágrimas vieram novamente, pois gostava
do avô, o seu único avô, que agora Clarice via baixar à campa fria. Adeus,
avozinho.
Acordara
com o sol entrando pela janela. A garganta estava seca. Sonhara com seu
casamento. Estranho sonho. O penteado nunca dava certo. Não fazia idéia de quem
era o noivo. Não era uma roupa de casamento.
Lembrou-se então do sonho que tivera antes. Sonhara com Mário Sérgio.
Nunca havia sonhado com ele antes. Sonhara que tinham se beijado. E ela tinha
iniciado o beijo. Que horror! Mas no sonho eles haviam iniciado um namoro, por
escolha de Mário Sérgio. Seria um bom presságio? Será que levaria a cabo o seu
casamento? Será que poderia se apaixonar pó Mário Sérgio? E ele?Poderia se
apaixonar por ela?
Era hora de
sair da cama e cuidar da vida. Se queria Mário Sérgio, tinha que se arrumar
melhor.Não podia aparecer na venda como costumava ir todos as vezes em que era
preciso.
Mas será
que Mário Sérgio merecia que ela se arrumasse para ele? Ainda não estava neste
estágio. Não estava apaixonada por ele. Não deitava seus pensamentos em seu
favor. Só queria casar-se e mais nada. E Mário Sérgio parecia a pessoa ideal.
Ideal? O homem ideal não existia. Mário Sérgio era a pessoa certa.
Não teve
nada o que comprar durante aquele dia. Que importava? Não podia ficar se
desmanchando de amores por ele. Nem tinha cabimento.
De noite
foi para a pracinha com Rosinha, filha de dona Iná, que estava de namoricos com
o Adalto da farmácia. Que graça tinha? Segurar velas, como uma tia solteirona.
Que dona Iná segurasse sua cabritinha, que ela tinha mais o que fazer. Desta
vez ia, mas nem mais uma.
A praça
estava cheia. As moças iam e vinham com sorrisinhos melosos. Os rapazes ficavam
em grupos e também sorriam. Clarice já pertencera a um grupo assim. Mas isso fora há muito
tempo.
Na praça
também havia gente mais velha, que tomava conta de gente bem mais nova. Outros
estavam lá apenas para tomar a fresca da noite. Rosinha encontrou-se com
Adalto. Sentaram-se os três num banco da praça. Clarice morreu de vergonha. Uma
tia velha, era o que parecia agora. Não queria ficar ali, atrapalhando a
conversa de dois pombinhos apaixonados.
Passou os
olhos pela praça de divisou bem perto um grupo de conhecidos seus, no qual
estava Mário Sérgio. Então o senhor Mário Sérgio também era freqüentador da pracinha?
Quando eram mais novos ainda vá lá. Mas agora? Será que ele estava interessado
em alguma moça? Ou quem sabe alguma moça estava interessada nele? Não tinha
sido ele o escolhido dela? Não fora o que sobrara? E se alguém viesse e lhe
passasse a perna?
Não podia
deixar de jeito algum. Ainda não estava apaixonada por ele. Mas isso era
questão de tempo. Gostava de seu porte. Não era o que podia se chamar de muito
lindo, mas tinha um belo sorriso. Ainda tinha um que de menino. Ao contrário
dela, era bem alto. Mas Clarice gostava de homens altos. Sentou-se próxima de
Mário Sergio, num grupo de conhecidos que se formava. Composto, é claro, de
pessoas mais velhas que estavam lá para tomar conta dos mais jovens que estavam
lá de namoricos.
Mário
Sérgio não lhe deu a mínima, mas com os dois era sempre assim. Por vezes se
tratavam como desconhecidos. Por outras, se cumprimentavam como amigos e por
outro até entabulavam uma agradável conversa, como se fossem ótimos amigos. No
entanto, Mário Sérgio nunca lhe devotara a mínima intenção de algo mais. Quanto
a ela, estava decidida. Casava-se com ele. “Dos males o menor”! Não ficava para
tia. Não mesmo.
Ele foi
cumprimentar uma conhecida e o fez de maneira tão efusiva que Clarice sentiu
ciúmes. Ciúmes de Mário Sérgio? É, podia dizer que sim. Se ele era sua próxima
e definitiva conquista, então não devia estar de sorrisos e abraços com
ninguém. A ela, ele nunca cumprimentava assim. Mas ainda pode ver Mário Sérgio
lhe pedindo um favor. Respirou tranqüila. As pessoas são muito efusivas quando
querem algo em troca. Mário Sérgio não era diferente.
Ele voltou logo para o grupo e estava mais animado.
Decerto amiga lhe prestaria o favor. Falaram amenidades. Sorriram todos juntos,
mas nada em especial. Clarice tinha que dar um jeito naquela situação. Mas não
se encontrava com disposição de correr atrás de Mário Sérgio.Não fizera isso com os mais bonitos,
os que gostara mais e os que tinham dinheiro. Não faria isso com Mário Sérgio
tampouco. Se não fosse Mário Sérgio, seria outro. Pra tia é que não ficava.
Já estava tarde e começaram a
despedir-se. Descuidara-se de Rosinha e Adalto. Bela vela era ela. Que dona Iná
não soubesse. Fora para a praça para olhar a pequena e lá estava ela, entretida
com o seu quase namoro. Ainda que Mário Sérgio não soubesse de nada. Teve
vontade de rir. Os homens são uns tolos. O rapaz não sabia o que o esperava.
_ Tenho que achar Rosinha. _
Disse Clarice.
_ Tenho que fechar a mercearia. _
Disse Mário Sérgio. _ Deixei com Chiquinho por meia hora, mas vou ficar mais um
minuto. _ E sorriu.
Gostava quando ele sorria, era o
seu maior encanto em Mário Sérgio.
_ Mas tenho que achar Rosinha. _
Clarice se levantou. Dera muita canja para a menina. Que dona Iná não soubesse.
Os outros se levantaram e
começaram a ir embora. Clarice e Mário Sérgio também o fizeram.
_ Vou tomar um café._ Ele disse.
_ O por que não tomou na meia
hora que Chiquinho te deu? _ Clarice perguntou. _ Está ficando muito abusado.
Então ele sorriu para ela. Para
ela e só ela. Não importava que fosse um sorriso de amigo. Mário Sérgio sorrira
para ela.
A noite não fora em vão. Logo
achou Rosinha, que parecia não ter arredado o pé de onde a deixara com Adalto.
Ainda bem que era calma a pequena. Não fosse isso, por agora estaria em maus
lençóis. Da próxima vez iria prestar mais atenção na pequena. Da próxima vez?
Não fora ela quem dissera que não mais se prestaria a este papel? Mas tudo bem.
Até que tinha sido bem proveitoso o passeio que dera. Bom para ela e bom para
Rosinha. Matara dois coelhos com uma cajadada só.
Acordou bem cedo. Estava
apreensiva. Tinha medo. Medo de quê? Por que o medo ás vezes assaltava o seu coração?
Ansiava por tantas coisas.
Penteou os cabelos. Então não era uma
moça bonita? Por que Mário Sérgio não a notava? Era diferente dos outros
rapazes. Era seu amigo. Conversava com ela, mas em nada demonstrava que
sentisse algo por ela. Nem que fosse uma simples admiração.
Podia desistir de Mário Sérgio. É
certo. Desistiria dele. Não o amava. Nunca estivera apaixonada por ele.
Decidira-se casar e ponto. Escolhera o primeiro que aparecera em sua frente.
Tantos outros rapazes lhe tinham
melhor apreço. Eram galantes com ela. É certo que Mário Sérgio era jovem, forte. Bonito até.
Era simpático com ela. Mas nada mais. Além disso, o que tinha de seu?
Morava desde criança, na casa da
avó. Estudara ali mesmo no Grupo Escolar. Não se tornara nenhum doutor e desde
muito cedo assumira a mercearia da avó. Mas o que era Mário Sérgio mais do que os outros? Nada.
É certo que trabalhava sem
descanso. Era homem de confiança. Não era de estar em curriolas de rapazes.
Sempre firme no trabalho. Mas não lutava pelo que era seu. Poderia ter sua
própria mercearia. “O olho do dono é que engorda o porco.” Se tivesse seu
próprio negócio, já teria muito mais de seu.
Talvez Mário Sérgio não fosse mesmo homem para ela.
Não podia deixar seu destino nas mãos de alguém tão pouco ambicioso. Mas se Mário Sérgio fosse mais do que era,
ela é quem não serviria para ele.
O que tinha para oferecer? Preocupava-se em ser prendada. Aprendera a
cuidar da casa, cozinhar, passar, engomar, bordar e costurar. E o que mais?
Possuía algum dote? Vinha de alguma família ilustre?
Até parecia que os jovens da
cidade estavam fazendo fila para casarem com ela. Pois sim! Um pouco mais e
ficaria para tia. Já estava pegando os encargos do ofício. Não fosse isso, dona
Iná não lhe confiaria Rosinha. E nem pra isso servia. Fora para tomar conta da
moça e entreterá-se com Mário Sérgio. Logo ele que não lhe dava a mínima.
Por que fixara-se em Mário Sérgio? Talvez porque não houvesse
muita opção. “Em terra de cego, quem tem um olho é rei”.
Logo após o almoço a mãe lhe
pediu que fosse buscar umas fazendas na casa de dona Efigênia. A senhora queria
encomendar um vestido para a neta.
Na volta encontrou Mário Sérgio
que chegava para o almoço. Sempre tão tarde, pobrezinho. Uma coisa não podia
negar, Mário Sérgio tinha bom coração. Sempre deixava que Chiquinho almoçasse
primeiro. Era por isso que sempre almoçava tarde. Logo ele que sempre acordava
tão cedo.
Estava de camisa preta e óculos
escuros. Devia estar se sentindo o tal, porque parou no início da escada e
ficou olhando para Clarice. Será que olhava para Clarice mesmo?
Lembrou-se de uma vez que Neuza,
uma amiga de classe chegou bem feliz dizendo que um rapaz olhara fixamente pra
ela. Disse que era muito bonito, estava bem vestido e estava de óculos escuros.
_ O problema dos óculos escuros é
que a gente nunca sabe para onde a pessoa está olhando. _ Disse Vilma
categoricamente.
Neuza ficou vermelha feito
camarão e mudou de assunto. Clarice teve vontade de defender a moça, mas não
queria se meter, as duas eram muito amigas. Mas que espécie de amizade era
aquela? Lembrava-se de um dia em que estavam fazendo um trabalho escolar na
casa de Anita e as duas foram preparar o lanche, deixando Neuza e Vilma
encarregadas de dar seguimento ao trabalho. Lembrava-se de ter ido buscar algo
que esquecera na sala e ouviu parte da conversa das duas que estavam na
varanda.
Falavam sobre beleza e Vilma
disse para Neuza se ela topava perguntar qual era a mais bonita. Neuza não
topou e Vilma vez cara de quem saíra vitoriosa. Numa discussão daquele tipo,
Neuza sempre ficara por baixo. Clarice correu para a cozinha com medo que elas
a vissem. Numa pergunta como aquela, ficaria numa saia justa. Encontrou Anita
entretida com o lanche. Era muito fácil Vilma fazer um tipo de coisa como essa
com Neuza. Queria ver se ela teria coragem de fazer o mesmo tira-teima com
Anita. Isso não faria mesmo. Anita era um tipo de beleza que não dava pra
ninguém competir. De modo que Clarice estava lá, com Mário Sérgio na frente
dela, de óculos escuros, olhando para Clarice ou para os passarinhos. Quem
podia saber. Ainda bem que Vilma não estava lá agora.
_ O que foi? _ Clarice perguntou.
Se estava olhando pra ela, teria de responder o por que. Tinha o meio sorrido
no rosto e uma cara de quem está se achando. Clarice não queria dar confiança
para ele.Ele tinha que decidir se achava Clarice uma planta ou uma mulher. Em
cima do muro é que não podia ficar.
_ Estou esperando criar ânimo.
_ Força. _ Clarice disse sem lhe
dar nem ao menos um sorriso. _ Estava cansada de dar murros em ponta de faca. _
Boa tarde e bom serviço, Mário Sérgio. _ Disse enquanto acabava de descer as
escadas.
_ Boa tarde, Clarice.
_ Ela fechou o portão atrás de si
e não olhou para trás. Não era mais uma mocinha. Não podia se dar ao luxo de
ficar sonhando com o Príncipe Encantado.
A mãe lhe chamou logo cedo. Não
tinha vontade de sair da cama. Ao contrário do dia anterior, que fora quente e
abafado. Abafado demais para o gosto de Clarice. O dia de hoje amanhecera bem
feio. Ana tinha deixado Niltinho com a mãe. O menino acabara dormindo com
Clarice. Revirara a noite inteira. De madrugada Clarice acordou com a roupa encharcada
de suor. Levantou-se e trocou de roupa. Que madrugada aquela. Não dormira bem.
_ Ande, Clarice._ A mãe chamou
novamente_ Preciso de açúcar.
Por que a mãe não comprava tudo
de uma vez? Por que tinha de ir centenas de vezes na mercearia, no armarinho e
na farmácia? Queria ficar o dia inteiro naquela cama.
O dia estava frio. Que tempo é
este que vive mudando? Sentia os pés gelados. Não gostava de lavar roupas em
dias chuvosos. Queria estar na cama agora. Às vezes pensava que sua vida não
caminhara como ela queria. Não que estivesse infeliz, mas será que as pessoas
pensavam que ela era uma fracassada? Isso não podia admitir.
_ Clarice. _ A mãe chamou,
tirando-a de seus pensamentos.
_ O que é, mãe?_ Perguntou
Clarice.
_ Vai buscar essas coisas na venda._ Disse a mãe lhe entregando
um papel de embrulho meio amarrotado.
Leu a lista. Poucas coisas.
Estava um pouco desanimada, mas foi trocar o vestido. Vai que Mário Sérgio
repara.
Chegou lá e encontrou o Chiquinho
no seu lugar.
_ Bom dia, Chiquinho._ Disse
enquanto entregava a lista.
Não ia perguntar por Mário
Sérgio. Não daria o braço a torcer. Não queria o seu nome em boca de Matilde
Voltou para casa. Trocara o
vestido à toa. Mário Sérgio não a merecia mesmo. Sonhara com ele na noite
anterior. Esquisito essa coisa de sonho. Costura sem parar e a roupa não ficava
pronta.Desmanchava a costura, costurava e tudo ficava na e mesma. Levava a
roupa para a prova, já era noite. Nada dava certo.
No sonho encontrava Mário Sérgio
na rua e ele lhe oferecia uma carona na bicicleta em que fazia entregas para a
mercearia. E ela aceitava. Que loucura. Jamais faria isso na realidade. Ele lhe
levava em casa e quando Clarice estava pronta para beija-lo. O pai aparecia e
estragava tudo. Sonho esquisito, aquele. Decididamente, Clarice tinha que parar
de pensar em Mário Sérgio.
_ Clarice. _ Disse a mãe. _ A
linha acabou, vai buscar no armarinho para mãe.
Acabara de voltar da mercearia.
Tirara o vestido e não ia trocar de novo. Que Mário Sérgio fosse às favas. Não
pensaria mais nele. “Antes que o mal cresça, corta-se lhe a cabeça.”
Passou pela porta da mercearia a
Chiquinho a chamou:
_ Que foi?_ Perguntou espantada.
_ Esqueci de botar o sabão no
embrulho. _ Falou o rapaz como quem pede
desculpas.
Mário Sérgio estava arrumando a
prateleira e não lhe dera a mínima. Também não ia se dar ao trabalho de falar
com ele. Queria sair logo dali. O que dera nela para achar que Mário Sérgio
seria um bom marido para ela? Não mesmo!
Não podia ficar nessa. Vai que um
belo dia ele arranjava uma namorada. E ela, como ficava?
Com cara de tola. Era melhor
desistir.
_ Vou comprar linha no armarinho
da dona Filó. Na volta passo aqui. Está bem, Chiquinho?
_ Tudo bem. O sabão já está
embrulhado.
Saiu logo da mercearia. Quem
Mário Sérgio achava que era? Isso era coisa bem dele. Onde estava com a cabeça
quando resolvera dar trela para Mário Sérgio? Logo ele? Não podia ter escolhido
algo melhor? O que tinha Mário Sérgio para que ela devesse correr atrás dele?
Estava para nascer o homem que a faria fazer isso.
Na calçada encontrou-se com
Rosinha, filha de dona Iná. A moça queria ir à farmácia comprar álcool. Mas por
que não comprara com Chiquinho, na mercearia? Era pra ver Adalto, na certa.
Queria que Clarice fosse com ela. O que há de se fazer? Ela mesma não andara
arrastando asas para Mário Sérgio? Rosinha, pelo menos, era correspondida. Não
teve outro jeito. Teve que ir com a moça. Que Rosinha não fosse com muita sede
ao pote. “Formiguinha quando quer se perder, cria asas.” A mãe falava sempre.
Mas como dizer isso para Rosinha? “Se conselho fosse bom, ninguém dava,
vendia.”
_ Vamos comigo ao armarinho.
Rosinha?_ Perguntou Clarice.
_ Vamos! _ A mocinha respondeu._
Também quero comprar uma fita para os cabelos. Quero uma fita para combinar com
aquele vestido que sua mãe está fazendo para mim. Está ficando bonito, Clarice?
_ Claro, Rosinha.
_ Acha que me cai bem?
_ Tudo te cai bem, Rosinha. _
Disse Clarice entre risos.
_ Está mangando de mim, Clarice?
. Perguntou a mocinha com um muxoxo.
_ É claro que não, Rosinha! _ Espantou-se Clarice. _ De onde tirou uma
coisa dessas?
_ Mamãe diz que sou muito magra.
Vive me dizendo para comer sempre mais.
_ Todas as mães dizem isso,
Rosinha. Mamãe sempre me fala a mesma coisa.
_ Mas você não é magra, Clarice.
Tem curvas! E que curvas! Podia ser manequim de revista.
_ Com esta altura, Rosinha! Tem
graça! Mais fácil se fosse você. É alta e esguia. Ficava bem numa passarela.
_ Alta e esguia! Bonito jeito de
se descrever um varapau.
Clarice caiu na gargalhada.
_ Deixe de bobagens, Rosinha.
Quantas mulheres não dariam tudo para ter seu porte.
_ Só se fossem malucas, Clarice.
Além do que, quem gosta de osso é cachorro. Homens gostam é de carne.
Clarice teve que rir, novamente.
Era divertida a pequena. Não mentiu quando disse que tudo caia bem em Rosinha.
Era a pura verdade. Sua mãe era costureira. Ela mesma dissera que tudo caia bem
em Rosinha, que gostava de costurar para a mocinha.
_ Rosinha tem medidas de miss. _
Dissera-lhe a mãe um dia.
_ Mamãe disse que você tem
medidas de miss, Rosinha.
_ Dona Amália gosta de mim,
Clarice.
_ Deixe de bobagens e vamos logo
para o armarinho. Não tenho todo o tempo do mundo, Rosinha.
Quando chegara lá, para sua
surpresa, Mário Sérgio também estava.
Ele segurava um rato com um
pedaço de pano.
_ Um rato! _ As duas gritaram em
uníssono.
_ Calma, meninas! _ Disse dona
Filó. _ Mário Sérgio já o matou para mim.
_ Eu não entro aí nem morta. _
Disse Clarice.
_ Pois eu quero minha fita. _
Disse Rosinha enquanto entrava._ Mas quero distância de Mário Sérgio. Que nojo!
_ Disse a mocinha para o rapaz.
_
Vou embora. _ Disse Clarice.
Clarice tinha pavor de ratos e
sapos. Se estivesse perto de uma barata, partia pra cima com um chinelo e acaba
com o problema. Mas um rato era coisa muito diferente. Não conseguia nem olhar
para o bicho. Coisa mais nojenta. Não sabia como Mário Sérgio tinha coragem de
ficar perto de uma coisa tão pavorosa.
_ Deixe de bobagens _ Disse
Rosinha, balançando a cabeça com ar de enfado. _ Não vê que o bicho já está
morto. Que mal pode te fazer?
Se Rosinha, que era praticamente
uma menina , entrara no armarinho. Não ia fazer papel de boba na frente de
Mário Sérgio. O que ele ia pensar dela? Não ia deixar que uma pirralha
parecesse mais forte que ela. Se a garota entrou, ela também entrava. Mas
passou de longe por Mário Sérgio.
_ Quero esta fita, dona Filó._
Escolheu Rosinha. Mas não parava de olhar pro rato. Pegou a fita e praticamente
saiu correndo do armarinho. Deixando Clarice para trás. Grande valentia a dela.
Todo aquele show de descaso diante do rato morto não passava de uma farsa.
Grande atriz era Rosinha. Clarice devia mesmo ter voltado da porta. Mas já que
estava ali, ia fazer o pedido a dona Filó. Rosinha havia de lhe pagar. Também
não podia chegar em casa sem a encomenda da mãe. Sabia que ela tinha pressa.
Clarice não podia falhar.
_ Espere um pouco, Clarice. Vou
jogar este rato fora._ Disse dona Filó.
Clarice continuava com medo.
Mário Sérgio parecia se divertir. Estava com aquele sorriso no canto dos lábios
que Clarice conhecia bem.
_ Pra longe de mim, com esta mão
de rato, Mário Sérgio._ Disse Clarice.
Ele avançou para ela como quem
vai tocá-la e riu. Era a primeira vez que isso acontecia desde que pararam de
se encontrar no Grupo Escolar. Depois que cresceram. Tornaram-se formais um com
o outro.
Ficaram conversando por um tempo
enquanto dona Filó se livrava do rato morto e Clarice se esqueceu da promessa
que fizera de não se ligar em Mário
Sérgio.
Ele se despediu dela e de dona
Filó. Clarice ficou no armarinho escolhendo as linhas que a mãe solicitara.
Gostava muito quando o moço lhe dava atenção. Ele sabia ser agradável quando
queria e Clarice se sentia bem com isso. Seria tão bom se ele fosse sempre
atencioso. Mas Mário Sérgio era uma pessoa muito imprevisível.
Na saída do armarinho encontrou
Mário Sérgio que admirava a obra da
estação de trem. Ele olhou para Clarice que chegava perto. Será que ele estava
a esperando? Isso era muito bom para ser verdade.
_ Está ficando uma beleza, não
está?_ Ele perguntou para Clarice.
_ Sim. _ Disse Clarice, enquanto
olhavas a obra. Também havia se interessado pela obra, Mas no momento, seu
interesse maior era em Mário Sérgio. Ela continuou seu caminho e ele caminhou
ao lado dela. Sentiu-se feliz. Estava fazendo progressos. A donzela que caminha
junto de um rapaz. Era a primeira vez que caminhavam juntos.depois de grandes.
Lembrou-se de uma vez que fizeram
um trabalho escolar juntos. Mário Sérgio era o único menino do grupo. Por que
ele aceitara? Não se lembrava. Naquela época era meninos para um lado e meninas
para o outro.
Lembrava-se que Mário Sérgio era
o único menino do grupo. Era estranho, lembrava-se Clarice agora. As meninas
que foram fazer o trabalho com ela não eram suas melhores amigas. Por que
aquele grupo se formara? Por que Mário Sérgio também estava no grupo sem nenhum
menino para lhe fazer companhia. Por que ele aceitara? Clarice não conseguia
lembrar.
Só lembrava que em determinado
momento, faltara papel e ela e Mário Sérgio foram buscar no armarinho de dona
Filó. Mário Sérgio a carregara na bicicleta da mercearia. Ficara um pouco
envergonhada, mas nem, tanto. Naquela época, seus interesses eram outros. Mário
Sérgio não fazia frente a seu primo Olavinho.
Eles entraram na mercearia e Clarice pegou o
embrulho com Chiquinho. Ela e Mário Sérgio se despediram. Estava começando a
amar aquele sorriso.
Abriu a janela e deixou que o sol batesse em cheio
em seu rosto. O sol! Quanto ansiara por ele. Olhou a réstia de sol que
penetrava em seu quarto, trazendo para dentro dele o perfume do dia lindo que
estava lá fora. Como era bom ter o sol depois de tanto tempo de nuvens
sombrias.
Olhou as partículas de poeira que dançavam na réstia
de luz. Era como se estas partículas também estivessem contentes com aquele dia
lindo e que caminhavam ao encontro do sol. Gostaria de sair correndo pelo
quintal. De sair para a rua. Ver o mundo, as pessoas, mas não tinha ânimo de
sair de dentro de casa. Preferiu ficar olhando a luz que insidia sobre tudo.
Como era alegre um dia de sol.
A filha de dona Filó atendeu Clarice. A mãe recebera
uma encomenda e não tinha a linha do tom. Dona Amália era praticamente sócia de
dona Filó, de tanto que comprara naquele armarinho.
_ Está bonita, Judite. E perfumada também. Está
apaixonada?
A mulher olhou Clarice enviesado. Eram geral era
sorridente, brincalhona. No entanto, naquele dia, apesar de bem vestida e
perfumada, estava com ares de poucos amigos. Clarice sentiu vontade de ser uma
formiguinha, para desaparecer dali.
_ Desculpe-me. _ Falou num fio de voz. Judite era
uma solteirona. Perto dos quarenta e nada de casamento. Era capaz de se sentir
desconfortável com certos assuntos.
_ Deixe de pedir desculpas por tudo, Clarice. Você
já não é mais uma menina.
E se não se cuidasse, ia acabar ficando pra tia,
como Judite. Até que era bem apessoada. Talvez nem tanto. Era só, mas não era
amarga. Mas naquele dia ...
_ Acho que este tom chega bem perto. _ Disse Judite
encostando um fio de linha na amostra de tecido que Clarice lhe trouxera. _ Que
acha, Clarice?
_ Está ótimo.
_ Quanto entusiasmo! _ Disse a outra em tom de
ironia. _ Não ficou zangada comigo, ficou?
_ Não. _ Respondeu Clarice sem jeito.
_ Não é culpa sua, Clarice. _ Disse a outra. _ Me
desculpe você, viu?
_ Tudo bem.
_ Fiquei com vergonha, foi isso. Sabe, Clarice. Não é por
que a gente já não é uma mocinha que deve se descuidar. Ontem fui numa festa
com mamãe. Não estava com muita vontade. Não dá ânimo de ir a uma festa depois
de se ficar o dia inteiro em pé atrás de um balcão. Você não sabe o que é isso.
_ Também tenho os meus afazeres, Judite.
_ Não me leve a mal, Clarice. Eu sei. Pois bem. Fui à
festa com a mamãe. E deixei tudo pra cima da hora. Não fiz um penteado, nem as
unhas. Coloquei a primeira roupa que me apareceu. Ia trocar, mas mamãe estava em
cólicas e tive que sair correndo. Mamãe faz questão de ser a primeira a chegar
na festa. Pode?
Clarice riu. Essa era a Judite que conhecia. Era muito
divertida.
_ O pior é mamãe, que gosta sempre de ser a última a
sair. _ Disse Clarice rindo. _ E então começa a faxina. Limpa mesas, arrasta
cadeiras, junta lixo. O no final, que os meus pés já estão doendo nos saltos,
sempre acabo com uma vassoura na mão.
_ Somos duas pobres meninas, Clarice. _ Disse Judite
rindo. _ Acredita-me que um dia chegamos tão cedo em uma festa que o dono da
casa nos ofereceu um lanche?
_ Não!. Disse Clarice entre divertida e horrorizada.
_ Palavra de honra! _ Disse Judite com uma daquelas caras
que só ela sabia fazer._ O lugar era longe. Saímos de casa com dia claro. Mamãe
tinha medo de errar o caminho. _ Não conhecia quase ninguém e os poucos
conhecidos que eu tinha, só me cumprimentava de longe. Fiquei a festa inteira
sozinha.
_ E sua mãe?!
_ Acredita que encontrou com uma velha conhecida que a
levou para visitar uma irmã entrevada na vizinhança? Disse que se demorava um
minuto e voltou depois que o bolo havia sido partido. Coisas de mamãe. Em outra
não me pega! Vivo dizendo isso, mas não adianta. Mamãe sempre me apronta mais
uma.
_ Pobre Judite. _ Disse Clarice rindo.
_ Pois então! Voltando a festa de ontem. Mamãe
apressou-me tanto que nem deu pra fazer uma maquiagem decente. Mal deu pra
jogar um perfuminho. Aquele de todos o dias, foi o primeiro que me veio a mão e
passar um batonzinho. Mas foi tão pouco e devo ter chegado a festa já sem ele.
_ E como foi?
_ Fiquei morta de vergonha,não é, Clarice? Estava todo
mundo tão arrumadinho. Vi que estava na hora de me cuidar um pouquinho.
_ É bem verdade, Judite, pois do contrário acaba pra tia.
_ Vou fingir que não escutei. _ Disse Judite fazendo um
muxoxo. _ Tu que não se cuide também, pois está indo pelo mesmo caminho.
Laurinha é mais nova que você e já está casada e com filhos.
_ Laurinha sempre foi uma apressada.
_ O coelho e a tartaruga!
_ Eu sou uma tartaruga e você um bicho preguiça.
_ É pra rir ou posso ficar te devendo? Ta certo, dona
Clarice, me venha com todas as ofensas. Fique sabendo a senhora que ontem
ganhei um gatinho.
_ Um gatinho?! _ Perguntou Clarice sem muito acreditar. _
Ou seria um gato velho.
_ Um gato velho fique a senhorita pra você, que já não é
nenhuma mocinha. O meu era um gatinho
mesmo. Mas novo até que você. E olha que era o rapaz mais bonito da festa.
_ Quer dizer que está namorando?! Não disse que estava
apaixonada? Conte-me tudo como foi.
_ Que namorando! Olha se tenho idade para está
apaixonada. Ainda mais por um gatinho. Ele só me olhou algumas vezes. Não dei
muita trela pra não fazer papel de ridícula.
_ Que ridícula, Judite? Ainda é muito bonita.
Judite ficou séria.
_ Por quanto tempo, Clarice? Quer um conselho? _ Disse a
outra pegando em sua mão. _ Não deixe o tempo passar demais. A beleza pode até
continuar por muito tempo, mas a juventude se vai e cada coisa tem seu tempo.
Não deixe a vida passar demais, Clarice. É melhor correr enquanto há tempo.
Deixe-me embrulhar as linhas que dona Amália deve ter pressa.
_ Disse-lhe que vinha de um pulo. _ Lembrou-se Clarice.
_ Você está vendo como o tempo corre depressa?
Clarice entendeu o significado daquelas palavras. Se não
queria terminar como Judite, era hora de tratar de arranjar um marido.
O negócio com Mário Sérgio não andava. Não estava
vendo futuro para aquele seu rompante de paixão ou qualquer outra coisa que
agora sentia por ele. Em certos dias achava que podia dar certo. Em outros, o
rapaz a tratava como se ela nem mesmo existisse.
Recebeu a visita de Arnaldo. Que maçada! Não estava
para fazer sala. Falaram sobre amenidades. Que vontade de sair correndo. Em
alguns dias a visita de Arnaldo era até agradável. Dizia-lhe palavras bonitas,
massageando-lhe o ego. Mas não era aquele dia. Não queria ficar de conversinhas
com Arnaldo. Gostava do rapaz, achava-o boa pessoa. Bom, honesto e trabalhador.
Muito mais propício que Mário Sérgio, que não lhe dava a mínima.
Mas faltava em Arnaldo alguma coisa que Clarice não
sabia explicar. Fosse Mário Sérgio que
lhe desse tanta atenção, a história seria outra. Com
Mário Sérgio era tudo mais difícil. Não conseguia decifra-lo, mas tinha
algo que a puxava para ele que Clarice não podia entender.
Quando dera por certo acabar com sua vida de
solteira, por que não se decidira por Arnaldo? Seria tão mais fácil! Nada de se
dar ao trabalho de conquistar ninguém. E agora estaria tudo resolvido.
Mas que graça tinha ganhar uma guerra sem entrar em uma
batalha? Com Mário Sérgio era assim.
Ganhava uma batalha aqui, perdia outra ali. Quanto tempo duraria esta guerra?
Do jeito que as coisas estavam, era bem capaz que fosse a “Guerra dos Cem
Anos”. E lá estaria ela, velhinha, solteira e sem filhos. Mas enquanto Mário
Sérgio não se casasse, ainda haveria esperança.
Se Arnaldo soubesse de seus pensamentos, certamente
a desprezaria. Ela mesma se desprezava por isso. Ele ali, todo tão seu,
enquanto ela fazia das tripas coração para conquistar alguém que pouco denotara
saber da sua existência. Era bem capaz de que só existisse para ele enquanto
estava na sua frente. Talvez nem se lembrasse dela em momento algum. Sonhara
com ele esta noite. Sonhara que queria ficar com ela. Só mesmo em sonhos!
Arnaldo se despediu.
_ Vamos tomar um sorvete, Clarice? _ O rapaz
perguntou.
Estava
demorando.
_ E eu lá sou mulher de sorvetes, Arnaldo?
_ Como assim?! _ Espantou-se o rapaz.
_ Deixe pra lá, Arnaldo. Não venha com bobagens,
está bem?
Arnaldo não desistia nunca. Podia ter concordado em
tomar um sorvete com ele. Que mal tinha? Mas não queria criar expectativas. Não
brincava com os sentimentos das pessoas. Arnaldo era bom. Não merecia isso.
_ Está bem. _ Ele disse meio sem jeito. _ Está bem tarde.
Até qualquer dia.
_ Até mais. _ Ela disse.
Entrou e foi se deitar. A visita de Arnaldo lhe fizera
mais mal do que bem. Talvez estivesse no caminho errado. Mas o que fazer?
Escolhera Mário Sérgio. Estava feito.
_Clarice. _ A chamou dona Iná._ Pode acompanhar
Rosinha até a praça? Estou tão cansada.
Não estava mesmo gostando daquele novo cargo de
segurar velas. Estava muito velha para isso. Aquilo era serviço para
crianças.Ou para gente velha. Nessa caso, Clarice estava muito jovem ainda.
Será que já estava com cara de velha solteirona?
_ Posso sim, dona Iná._ Respondeu para a senhora.
Clarice não gostava de negar nada para ninguém.
Principalmente os mais velhos. Não ficava bem. Dona Iná era uma senhora tão
boa. Não tinha coragem de dizer que não iria. Rosinha também ficaria muito
infeliz de não poder ir à praça.
Probrezinha. Também precisava espairecer. Era tão
jovem e não tinha irmãos. Rosinha sempre fora uma menina muito sozinha. Não
brincava com as outras crianças. A mãe não deixava. Lembrava-se de Rosinha,
quando pequena, brincando com as bonecas e panelinhas, sozinha na varanda da
frente. Rosinha conversava com as bonecas. Clarice tinha pena da menina.
Por vezes chegara a brincar com a menina, para lhe
fazer companhia. Deve ser por isso que Rosinha ficara tão confiada e não
percebia os dez anos que a separavam.
Foi para a praça. Estava cheia. Estava um pouco
desanimada com Mário Sérgio. Talvez ele não fosse rapaz para ela. Rosinha foi
falar com Adalto e Clarice não teve ânimo de segurar vela. Juntou-se a um grupo
de amigas de infância. A conversa não parecia fluir. Por que as pessoas se
perdem umas das outras?
Mário Sérgio não estava na praça, naquele dia, mas
Chiquinho estava. Chiquinho era bom moço. Tinha verdadeira adoração por Mário
Sérgio. Era o irmão mais velho que Chiquinho não tinha. Mas Mario Sérgio era
mais sozinho do que Chiquinho. O garoto tinha pais e uma irmãzinha ainda
menina. Mário Sérgio não tinha ninguém além da avó. Não tinha irmãos, como
Rosinha e quando os pais se foram, teve que deixar sua própria casa, para morar
no casarão. Não perdera apenas os pais, perdera também o seu lar.
O pai de Chiquinho tinha seu próprio negócio, mas o
rapaz preferia ficar na mercearia com Mário Sérgio. Tudo que Mário Sérgio fazia
era um espelho para o primo. Queria imitá-lo em tudo. Era verdade que Chiquinho
ainda era um adolescente, mas Mário Sérgio com sua idade, já tinha quase a
altura quem tem. Mário Sérgio saíra aos Guimarães. Alto, forte e louro.
Chiquinho saíra ao pai. Não puxara em nada a família da mãe.
Anita estava do seu lado. Tinham sido amigas nos
tempos de escola. Anita era aquele tipo de menina que já nascera bonita e que
ia se tornar uma moça bonita, que mais tarde se tornaria uma mulher bonita e
bem mais tarde seria uma velha bonita. Até agora Anita tinha cumprido com o
prometido. Era uma linda moça.
Lembrava-se de Anita ainda menina, com lindos cachos
castanhos claros, coroados por fitas de cetim cor de rosa. Anita adorava rosa.
Era uma menina cor de rosa. Todos os meninos eram apaixonados por ela. E as
meninas faziam de tudo para está ao seu lado. O mundo se curvava às vontades de
Anita. Admirava-se por ainda não haver se casado. Partidos é o que não lhe
faltavam, mas Anita gostava muito de escolher. Ela que não demorasse, pois caso
contrário, bonita ou não, acabava ficando pra tia. Quem muito quer, acaba sem
nada.
As duas conversavam sobre amenidades, já não eram tão
íntimas como no tempo de escola.
Abel, o moço novo na cidade, aproximou-se de Anita.
Veio com aquela conversa tola, de rapaz bobo. Do tipo que estava enamorado.
Quando se afastou, Clarice perguntou para Anita:
_ Não é o moço novo, que é ajudante do alfaiate?
_ Ele mesmo. _ Respondeu a moça.
_ Então já estão se dando?_ Perguntou Clarice com um
sorriso maroto.
_ É o que parece.. _ Disse a moça com uma cara
envaidecida.
_ Parece que gosta de você. Não percebeu?
_ Desde o primeiro dia em que bateu os olhos em mim.
_ Não seja prosa, Anita._ Disse Clarice rindo. Como
era vaidosa a moça. Também, sempre tivera todos aos seus pés. Não era de se
admirar que Anita fosse assim.
_Que posso fazer?_ Ela perguntou para Clarice com ar
de desdém. _ Quando deitei os olhos naquele estranho que estava com os outros
rapazes na praça. Ele olhou diretamente para mim.
_ Então foi amor à primeira vista?_ Clarice
interessou-se. Gostava muito de histórias românticas. Anita não queria dar
mostras de estar interessada, mas o rapaz mostrara um interesse e tanto. Estava
mesmo caído por Anita. Isso não se podia negar. Talvez a moça não lhe fosse
indiferente. Talvez até estivesse interessada e não queria que as pessoas
percebessem.
_Não fale em amor, Clarice. Não de minha parte.
_ Então não está apaixonada por ele? _ Clarice ficou
um pouco decepcionada.
_ Deixe de bobagens.
_ Mas o moço parece encantado. Como foi que tudo
aconteceu?. Conte-me tudo, Anita.
_ No princípio parecia meio arisco. Mas depois
começou a fazer perguntas sobre mim para as pessoas, como se eu não estivesse
perto. Depois começou a conversar comigo. Perguntou minha idade e disse a dele.
É batata!
_ E você, o que diz?
_ Não digo nem que sim, nem que não. Ele veio atrás
de mim na festa de Lucinha. Veio atrás de mim, imagine!
_ Já te pediu em namoro?
_ Não, é muito cedo para isso.
_ Acha que está perto?
Pelo visto sabia que o rapaz levaria um toco. Mas
talvez Anita dissesse sim. Era bem verdade que ele não era lá essas coisas, mas
o que havia de se fazer? Talvez Anita lhe desse alguma chance..
_ Ainda não sei dizer.
_ O que vai responder?
_ É claro que vou dizer não, Clarice. Você gostaria
de se casar com o ajudante do alfaiate? Se ainda fosse o dono da alfaiataria.
Mesmo numa cidade como aquela havia a barreira do
preconceito social. Anita era amiga, ou fora, da filha da costureira. Mas daí a
casar-se com alguém inferior. Isso nunca! Que fazer? Era a ordem natural das coisas.
Ela mesma não queria algo melhor para si? Se o rapaz investisse nela e não em
Anita, será que aceitaria? Como podia julgar Anita? Não tinha mesmo o direito
de fazer isso.
_ Muito bem, seu Chiquinho. _ Disse Mário Sérgio,
que chegara sem que Clarice percebesse,
para o rapaz que estava num grupo ao lado. _ Então me deixou fechar a
mercearia sozinho. Era só um sorvete não é mesmo?
_ Deixe de exploração, Mário Sérgio. _ O interrompeu
Anita. _ O garoto precisa se divertir.
_ E eu não?
_ Um burro velho é o que você é. Seu tempo de
diversão já acabou.
_ Muito bem! _ Disse Mário Sérgio rindo. Nada
parecia alterar seu humor. _ Enquanto isso, as duas “mocinhas” ficam aqui na
praça por obrigação.
_ Não venha com ofensas, Mário Sérgio._ Disse Clarice. _ Estou mesmo por obrigação. Vim
trazer Rosinha.
_ Que Rosinha? Aquela que está ali debaixo daquela
árvore aos beijos com Adalto? _ Perguntou
Mário Sérgio rindo.
Clarice levantou-se de um salto. Então descuidara-se
de Rosinha. Se dona Iná soubesse de uma coisa dessas. No mesmo instante
localizou Rosinha, que estava num grupo de adolescentes apenas de mãos dadas
com Adalto. Namoro mais inocente não poderia. Fuzilou Mário Sérgio Mário com um
olhar.
_ Eles não estão fazendo nada de mais, seu
antipático.
Mário Sérgio deu uma gargalhada.
_ Parece que não está cumprindo sua obrigação
direito, Clarice. Caso contrário não teria levado esse susto.
_ Deixe Clarice em paz, Mário Sérgio! _ Disse Anita.
_ Clarice é tão severa quanto uma
velha. Acho que era mais jogo para Rosinha ter vindo com a própria mãe.
_ É verdade. _ Concordou o moço._ Clarice sempre foi
muito severa com os meninos.
Os dois riram e Clarice ficou irritada. As pessoas
devem mesmo sofrer de amnésia. Os meninos é quem sempre foram muito severos com
elas. Depois que foi se tornando uma moça bonita é que as coisas começaram a
mudar, mas daí já era tarde. Não confiava em nenhum deles.
_Venham,
Anita e Clarice. Trouxe a máquina fotográfica. Quero tirar a foto do grupo. _
Chamou Luiza com a máquina fotográfica em punho.
_ Está bem.. _ As duas concordaram.
_ Venha também, Mário Sérgio. Apesar de você ser um
tanto metido.
_ Metido eu?_ Gracejou Mário Sérgio. _ Claro que
não. Vamos logo tirar as fotos.
Dito isso, abraçou Clarice. Mário Sérgio a
abraçando! Gostou daquele contato.
_Pode tirar a foto. _ Disse o rapaz.
Clarice estava um pouco envergonhada com o contato.
E se alguém percebesse? Melhor não pensar no assunto. Eram amigos, ou quase,
desde crianças. Era normal que a abraçasse para tirarem uma fotografia.
_ Esperem_ Pediu Luiza. _ Quero juntar todo mundo.
_ Mas não se demore, Luiza. _ Disse Clarice. _ Já é
tarde e não posso me demorar com Rosinha.
Luiza foi buscar mais pessoas. Janice se juntou ao
grupo.
_ Vamos logo com esta foto. _ Disse Mário Sérgio, que naquele dia parecia
inspirado. E abraçou Clarice mais uma vez. Também abraçou Janice, o que deixou
Clarice mais confortável. Não queria ver seu nome em boca de Matilde. As
pessoas falam muito.
Clarice tropeçou e se apoiou em Mário Sérgio. Isso
era quase um abraço. Se ele soubesse de tudo. Será que Mário Sérgio percebia
alguma coisa? E a foto não saía. Será que Luiza queria fotografar toda a
cidade? Tinha que ir embora, ou levaria uma reprimenda de dona Iná. Já era hora
de Rosinha estar em casa.
Finalmente a fotografia saiu. Mário Sérgio a abraçou. Ficou feliz com isso.
Outras pessoas também estavam na pose, mas ela só sentia Mário Sérgio. Era como
se de repente o mundo parasse e tudo o que ela sentia era a mão do rapaz em seu
ombro. Por que escolhera Mário Sérgio?
Clarice lavava a louça enquanto
se lembrava de Mário Sérgio.
_ Vamos até a mercearia,
Clarice?_ Perguntou Rosinha, que surgiu na porta sem a mínima cerimônia.
Mercearia! A palavra estava se tornando música aos ouvidos de Clarice. Podia
ver Mário Sérgio!
_ Claro, Rosinha. _ Disse Clarice
enquanto enxugava as mãos no avental. _ Deixe-me trocar de roupa. Você espera
um bocadinho?
_ Trocar de roupa para que,
Clarice? Está ótima. Demais a mais, o que vamos ver na mercearia? Lá só tem o
Chiquinho e o Mário Sérgio. A não ser que... Já sei! É Mário Sérgio!
_ O que tem Mário Sérgio, menina?
_ É pra ele que quer se enfeitar!
Janice me disse que os viu andando uma vez pela rua. E ontem, na praça? Ele a
abraçou para tirarem a fotografia.
_ E que tem isso? Somos apenas
amigos. Amigos desde crianças. Não sabe
que estudamos juntos?
_ E daí?
_ Ora, Rosinha, deixe de
bobagens. Não vou mais com você à mercearia.
_ Está apaixonada por Mário Sérgio! _ Disse
Rosinha, como quem faz uma grande descoberta.
_ Apaixonada, eu? Deixe de
sandices, menina!
_ É claro que está. _ A outra se
animou. _ Está até vermelha.
_ Não sei de onde você tirou uma
asneira dessa.
_ O amor é cego e pensa que os
outros não enxergam também. É claro que está apaixonada por Mário Sérgio.
_ Não vou ficar discutindo com
você, Rosinha. Não vou poder mesmo ir
com você à mercearia. Mamãe precisa de ajuda com as costuras. E pare de pensar
bobagens, viu?
_ Quero bolo! _ Disse a mocinha
enquanto saía.
Clarice estava assustada.
Apaixonada por Mário Sérgio. Ela? Não podia ser! Escolhera Mário Sérgio
racionalmente. Não tinha nada a ver com paixão. Decidira-se casar e escolhera
Mário Sérgio. Conseguira algum progresso, mas não tinha nada a ver com paixão.
Não podia estar apaixonada por ele. Isso não estava nos seus planos.
Conheciam-se desde meninos.
Tinham quase a mesma idade. Ele era apenas alguns meses mais velho que ela.
Estudaram juntos durante toda a vida escolar. Nunca tivera olhos para Mário
Sérgio. Nem ao menos ia com a cara dele. Como podia estar apaixonada da noite
para o dia?
_ Clarice! _ Chamou a mãe poucos
dias depois. _ Preciso de batatas para o almoço e o sabão acabou. Pode buscar
na mercearia pra mãe?
Mercearia: Mário Sérgio. Mário
Sérgio: mercearia. Não queria ir. Estava evitando o lugar desde que Rosinha
saíra com aquela história de que ela estava apaixonada por Mário Sérgio. Não
podia ficar fugindo a vida toda. Talvez Rosinha não tivesse dito nada.
Foi até a mercearia. Com sorte
Mário Sérgio não estaria lá. Podia ser que Chiquinho estivesse em seu lugar.
Chiquinho estava, mas Mário Sérgio também e foi ele quem veio atendê-la.
Ele sorriu para ela. Sua cara
queimou.
Ele sabe! Ele sabe! Rosinha
deve ter batido com a língua nos dentes!
Não podia ser verdade. O que ia
fazer agora?
_ Bom dia, Clarice. O que vai ser
desta vez?
_ Bom dia, Mário Sérgio. Vou
querer um quilo de batatas e dois tabletes de sabão.
Sabia que estava vermelha.
Rosinha havia de lhe pagar. Mário Sérgio sorria e estava com um sorriso de quem
zomba.
Voltou quase correndo para
casa..Os homens daquela família! Lembrou do dia em que dona Duca falara sobre o
noivado de Olavinho. Parecia que fora há séculos atrás. Fora antes de se
interessar por Mário Sérgio. Lembrara que a sensação fora desagradável. Ela
tinha sido apaixonada por ele quando criança. Apaixonada é uma palavra muito
forte. Todos os sentimentos de outrora pareciam água diante do que agora sentia
por Mário Sérgio.
Mas Clarice achava Olivinho
simplesmente lindo. Achava que a última vez que o vira fora numa festinha de crinça
há muitos anos atrás. Ele devia estar entrando na adolescência. Mas Clarice não
tinha muita certeza disso.
No início de sua adolescência,
Anita contou que passou um final de semana na casa dele. Clarice morreu de
inveja, mas quis saber todos os detalhes. Crianças e adolescentes acham o
máximo ver o sucesso dos outros, numa área que eles gostariam de estar se dando
bem.
Clarice podia até tê-lo visto de
relance, de muito longe, mas não se recordava bem. Depois de jovem, Sandra, sua
prima, trabalhou para ele, numa mercearia, num bairro vizinho. Clarice achava o
máximo Sandra conviver com aquela lindeza. Mas a Sandra nem ligava. A prima
sempre fora assim. Nunca dera a mínima bola para pessoas mais jovens. O
Olavinho devia ser um pouco mais velho que Clarice, mas era mais jovem do que
ela. Se é mais jovem, a Sandra simplesmente nem vê.
O fato era que o Olavinho nunca
ligou para Clarice. Nunca lhe deu a mínima bola. Não se lembrava se algum dia
chegaram a trocar uma palavra, mas sua figura sempre a encantou. Era como uma
figura mitológica, saída de um tubo de televisão a passar por ela. Só passar,
pois se falar estraga. Quando a gente chega perto de uma pessoa dessas e
conversa com ela e vê que esta pessoa é de verdade, acaba perdendo a graça. Não
tinha sido assim com o seu último namorado? Ela o achou posudo e quando o
namorou. Céus! Deu vontade de sair correndo e saiu mesmo. Pessoas de verdade
são muito complicadas.
O irmão dizia que Clarice só
gostava de gente da televisão. E era verdade. Achava um homem lindo e o amava
de paixão. Se ele representava um vilão, não ligava., porque sabia que aquilo
era só representação. Mas quando lia uma entrevista ou via um programa de
entrevista e via como aquela pessoa era de verdade, ficava desiludida. O melhor
seria se os galãs não falassem, só representassem.
Por que tinha que se apaixonar
por Mário Sérgio?
Dona Iná insistiu para que
Clarice a acompanhasse a praça. Ainda estava agastada com a adolescente
fofoqueira. Rosinha não merecia sua companhia. Mas dona Iná pedira na frente de
sua mãe e Clarice teve medo que Rosinha desse com a língua nos dentes. De modo
que não teve outro jeito a não ser acompanhar a menina.
Caminharam as duas em silêncio. A
menina ia de cabeça baixa. Clarice não queria discutir com crianças. Não iria
descer tão baixo. Ia esperar pra ver como a história acabaria. Com um pouco de
sorte tudo cairia no esquecimento.
_ Olha que bela rosa no jardim de
dona Ana, Clarice._ A mocinha resolveu puxar conversa.
_ Não pense que esqueci o que me
fez, Rosinha. Não quero falar neste assunto, nem em qualquer outro por
enquanto.
Encontraram Anita antes de chegar
à praça.. Queria saber à quantas andava o seu romance com Abel, o novo ajudante
do alfaiate. Mas não o queria fazer na frente de Rosinha. Chega de mexericos.
_ E o moço da alfaiataria? _
Perguntou Rosinha à Anita.
Então tornara-se uma profissional
a pequena? Rosinha estava se tornando uma Candinha daquelas.
_ Deixe de se intrometer na vida
dos outros, Rosinha. _ Clarice ralhou.
_ Deixe pra lá, Clarice. Não
tem a menor importância.
Pela cara de Anita, sabia que o
romance azedara. Tão cedo e já haviam brigado?
_ Vocês brigaram? _ Perguntou
Clarice.
_ Qual nada, desandou e pronto.
Não ligo. Um passinho à frente que a fila quer andar.
_ Não diga bobagens, Anita. O
moço parecia tão enamorado.
_ Mas não sei o que lhe deu. E
uma hora pra outra virou-me a cara. Já não me olha mais. Pouco fala comigo.
_ E o que fez com o moço?
_ Juro-lhe que nada. Alguns
romances são assim, Clarice. Desandam e pronto. Eles te olham como você fosse
uma rainha e de uma hora pra outra lhe viram a cara. Sem nenhuma explicação. E
então, instaura-se entre os dois um mal estar tal que não há lugar nem para uma
boa amizade. Isto nunca te aconteceu?
_ A mim nunca. _ Intrometeu-se
Rosinha.
_ Bem se vê, Rosinha, com tua
pouca idade._ Disse Anita._ Mas espere e verá. Antes não espere nada. Agarra-te
com Adalto que é bom moço e moço trabalhador e trate de o levar ao altar tão
logo vocês tenham idade. Palavra de quem já está ficando para tia. E tu,Clarice
trate de agarrar bem e amarrar Mário Sérgio, que este já tem idade para casar.
Levou um baita susto. Então Anita
também sabia. Quantos mais saberiam?
Chegaram à praça. Que já estava cheia. Rosinha
correu para um grupo de amigas de sua classe. Anita a levou para um grupo de
moças e rapazes no qual estava Mário Sérgio. Estava muito bem vestido naquele
dia. O coração de Clarice disparou quando o viu. Era a primeira vez que aquilo
acontecia frente a Mário Sérgio. Nem se lembrava a última vez que aquilo lhe
acontecera. Ficara esquecido com amores da adolescência. Não sabia que os
adultos também tinham seus corações disparados.
_ Venha, Clarice. _ Disse Vilma,
que estava sentada próxima de Mário Sérgio. _ Sente-se aqui conosco.
Vilma levantou-se e deixou vago o
lugar junto de Mário Sérgio. Todos estavam com aquela cara zombeteira. Até
mesmo Mário Sérgio.
_ Não precisa levantar-se de seu
lugar, Vilma. _ Disse Clarice muito sem jeito.
_ Que nada, Clarice. Estava mesmo
querendo comprar pipocas. Não é, Cida?
_ Isso mesmo. _ Disse a outra,
levantando-se também.
_ Também vou. _ Disse Clarice.
_ Mas acabou de chegar. _ Disse
um dos rapazes. _ Fique, Clarice. Queremos conversar um pouco com você. Não é,
Mário Sérgio?
_ Claro!_ Disse o rapaz,
parecendo um pavão.
Ia matar Rosinha por torná-la a
mais nova chacota da cidade. De minuto a minuto, cada rapaz e moça deixou o
grupo com uma desculpa esfarrapada. Até que só sobrou ela e Mario Sérgio no
banco da praça. Mas ninguém foi embora. Estavam em outros bancos, de pé, por
todos os lados. Não só ele, mas como a praça inteira sabia de tudo. De repente,
tornara-se a sensação da praça. Foi ficando sem jeito. Envergonhada, mais do
que já estava. Foi ficando gelada. Queria ir embora. Não fora boa idéia atender
o convite de dona Iná.
_ Boa noite, Mário Sérgio. _
Disse enquanto se levantava. _ Já está ficando tarde.
_ Está certo. _ Disse Mário
Sérgio se levantando também. _ Eu levo você.
_ Me levar em casa! Por quê? Moro
tão perto.
_ É o que todos esperam que eu
faça, não é, Clarice?_ Disse ele rindo.
_ Mas não é o que eu espero. Não
faço nada por causa dos outros._ Disse Clarice enquanto já caminhava.
Mário Sérgio a seguiu.
_ Já não disse que não precisa?.
_ Disse Clarice entre os dentes.
_ A rua é pública.
Ele parecia divertir-se com a
situação.
_ Como quiser.
Clarice podia notar o sorrisinho
de todos. Ia dar uma surra em Rosinha. Ao atravessarem a rua, Mário Sérgio
segurou em sua mão.
_ Isso já é demais! _ Disse
Clarice enquanto puxava a mão.
Mas Mário Sérgio não soltou.
Segurava firme.
Que vergonha, meu Deus. O que
vão pensar de mim?
_ Por que está fazendo isso comigo, Mário Sérgio?
Não quero virar a chacota da cidade.
_ Não disse que não faz nada por
causa dos outros?
_ Estou tão envergonhada!
_ Deixe de bobagens, Clarice.
Você já não é mais nenhuma menininha.
_ Por isso mesmo. Não tenho mais
a idade de Rosinha. O que ela disse para você, Mário Sérgio?
_ Nada.
_ Como nada?! De repente você e
toda a cidade mudam de comportamento comigo e você me diz que Rosinha não falou
nada?
_ Foi você quem começou a mudar
de comportamento primeiro, Clarice.
_ Odeio você, Mário Sérgio.
_ Odeia nada!
Disse o rapaz rindo.
_ Pronto, chegamos. Solte minha
mão, porque não quero que papai ou mamãe nos vejam assim. Obrigada pela companhia
e boa noite. _ Disse Clarice enquanto abria o portão.
_ Só isso?. Ele perguntou.
_ Só isso, o quê?
Não teve tempo para receber
nenhuma resposta. Mário Sérgio lhe deu um beijo daqueles. Primeiro levou um
susto. Depois teve raiva. Como ousava? Quando ia empurrá-lo, descobriu que
estava gostando do beijo. O que podia fazer? O beijo já estava acontecendo
mesmo. Não tinha mais volta. Então correspondeu ao beijo.
Beijara pouquíssimas vezes, mas
decididamente, aquele fora o melhor. Não acreditava em beijo bom e beijo ruim.
Não até aquele momento. Mário Sérgio, quem diria? Se alguém lhe dissesse isto
há uns meses atrás, ela cairia na risada.
O beijo acabou e Clarice voltou a
sentir vergonha. Desvencilhou-se do rapaz. Tinha vontade de sair correndo.
_ Boa noite, Mário Sérgio.
_ Boa noite, Clarice. Amanhã falo
com teu pai.
_ Falar o quê? – Ela assustou-se.
_ Que estou namorando a filha
dele. Não sou nenhum moleque.
_ Mas não estamos namorando.
_ Estamos sim, Clarice e a cidade
toda já sabe. Esse namoro já começou e foi você quem deu o primeiro passo. Não
vai voltar atrás agora. Sonhe comigo. _ Disse Mário Sérgio já se pondo a
caminho.
_ Mas eu não quero.
_ Não quer? _ Ele deu meia volta
e soltou uma gargalhada. _ É bom saber o que você realmente quer, Clarice. Eu não
me lembro de ter beijado sozinho.
_ Boa noite, Mário Sérgio. _
Disse Clarice, entrando em casa numa carreira.
Estava morta de vergonha.
Correspondera ao beijo. Fora ela quem começara com tudo isso. Ele tinha
razão.Tudo tinha sido culpa dela. Não tinha mais jeito. Que fosse o que Deus
quisesse.
Os dois estavam na sala. Ainda
não se acostumara com aquele namoro com Mário Sérgio. Era muito estranho que
agora fossem namorados. Por que ele aceitara tudo aquilo? De repente o rapaz
fez uma cara de dor.
_ O que foi, Mário Sérgio? – Ela
perguntou. _ Está sentindo alguma coisa?
_ Meu braço está doendo desde
ontem. Começou quando levantei umas caixas na mercearia.
_ Pode ter havido alguma
distensão. Precisa ir ao médico.
_ Não sei se é preciso. Dói um
pouco. O que faço?
Era a primeira vez que Mário
Sérgio lhe fazia uma pergunta como aquela. Importava-se com sua opinião. Era
como se pela primeira vez ela fizesse realmente parte de sua vida.
_ Acho que deve ir ao médico. _
Ela lhe sorriu com carinho. Estava emocionada. Seria tão bom se Mário Sérgio
sentisse por ela o mesmo que ela sentia por ele.
Às vezes achava Mário Sérgio
muito distante. Por outras lhe dava alguma atenção. Como agora. Ele olhou para
ela e só então fez a cara de dor. Parecia mesmo que ele queria que ela
perguntasse o que estava havendo. E depois lhe perguntara o que fazer. Mário
Sérgio era mesmo uma incógnita. Por que escolhera Mário Sérgio? Quando tudo
começara, nem ao menos pensava nele. E agora estava ali, entregue, sem saber se
era correspondida ou não. E se ele achasse que era uma oferecida? E se ele
estava com ela apenas porque toda cidade achava que deveria estar?
_ Uma moeda por seus pensamentos.
_ Ele disse.
_ Não valem isso. _ Ela
respondeu.
_ Que tal um beijo?
E Mário Sérgio fez aquela cara
que ela odiava e amava ao mesmo tempo. Cara de gente convencida. Mário Sérgio,
o rei da cocada preta. Ele podia não ser ambicioso. Pra que mais? Ele já achava
que tinha o rei na barriga. Talvez fosse isso que a fascinava em Mário Sérgio.
Ele não parecia ter falta de nada. Era como se ele tivesse tudo, mesmo tendo
tão pouco. Queria ser esta autoconfiança. Era muito confortável.
_ Sem moeda, sem beijo. _ Disse
ele por fim. _ Seus pensamentos estão muito longe. . _ Ele se levantou. _ Tenho
que ir embora, amanhã acordo cedo para abrir a mercearia.
Ela também se levantou. Olhou pra
cima. Ainda não acostumara com toda essa altura de Mário Sérgio. Quando eram
pequenos, a diferença não era tão grande assim. Agora parecia tão forte, tão
senhor de si. Era muito estranho que seus sentimentos por ele tivessem mudado
tanto assim.
Quando eram pequenos, ela nem
mesmo sentia alguma simpatia por ele. Estudaram juntos, mas não brincavam
juntos. Na adolescência a situação até piorara. Chegava a ter antipatia por
Mário Sérgio. Depois eles foram se tornando adultos e a antipatia foi cedendo.
Até que virou uma simpatia, mas uma simpatia polida, sem amizade. E agora ele
não saía de seus pensamentos. Como tudo mudara tão de repente?
_ Você está mesmo distante. Tenho que ir. _ Ele disse enquanto caminhava
para a porta.
_ Vou te levar ao portão. Está
agastado comigo?
_ Claro que não!
Mas estava. Ela sabia. E se ele
não a quisesse mais? E se desmanchasse com ela?
_ Boa noite, Clarice. _ Disse ele
lhe dando um beijo na face.
_ Boa noite, Mário Sérgio. E não
deixe de cuidar desse braço.
_ Pode deixar.
Ele se foi sem olhar para trás. E
se fosse a última vez? E se não voltasse mais? Ia sentir sua falta.
_ Mário Sérgio!_ Ela chamou.
Ele se virou e ela correu para
seus braços e o beijou.
_ Sonhe comigo. _ Ela disse.
Ele riu e disse:
_ Vou fazer o possível. Esse
beijo valeu mais do que muitas moedas.
Ela lhe deu um forte abraço e
suspirou. Como queria ter coragem para dizer que o amava. Que ele era a causa
de seus pensamentos estarem longe. Sentiu o seu perfume. Era tão bom. Cheiro de
Mário Sérgio! Quando fosse à farmácia, ia pedir que Adalto lhe mostrasse os
perfumes e ia comprar um igual. Só para poder sentir o cheiro de Mário Sérgio a
hora que quisesse.
_ Eu ia mesmo adorar ficar aqui
abraçado com você a noite toda, Clarice. Mas tenho mesmo que acordar cedo
amanhã. Boa noite, namorada.
Namorada, ele disse. Ela era
mesmo a sua namorada? Não podia mesmo acreditar em tudo aquilo.
_ Boa noite, namorado.
Ela voltou para o portão.
_ Espere. _ Disse ele a puxando
pela mão. _ Não se vá sem antes me dar mais um beijo.
Eles se beijaram e Clarice quis
acreditar que Mário Sérgio realmente sentia o mesmo por ela.
Ele finalmente se foi. Ela entrou
e Mário Sérgio foi seu último pensamento. Quando adormeceu, foi ela quem sonhou
com ele. Mário Sérgio não só fazia parte de sua vida, fazia também parte de
seus sonhos.
_ Um almoço de domingo? _ Ela se
espantou.
_ Claro! Toda a família vai estar
lá. Quero que todos conheçam minha namorada.
_ A maioria da sua família já me
conhece, Mário Sérgio.
_ Mas agora é diferente. Você é
minha namorada.
Um almoço de domingo no casarão.
Num estivera lá num dia desse. As crianças brincavam juntas na rua, mas na hora
do almoço era cada um pra sua casa.
Lembrava-se dos tempos de
Olavinho. Será que ele estaria la? É claro que não. Há muito que não o via por
aquelas bandas. Será que se sentiria bem almoçando com a família de Mário
Sérgio? A filha da costureira na mesa de domingo do casarão. Nunca estivera na
mesa deles em um dia de domingo. Nem sabia como era, como se portavam. Sabia
como se portava a sua, mas não a família de
Mário Sérgio.
Será que iriam ficar olhando para
ela enquanto comia?
Não gostava de comer na casa dos
outros. Sempre detestara. Se ainda fosse só dona Efigênia e a Duca, tudo bem,
mas toda a família. Isso não ia prestar. Por que Mário Sérgio inventara tudo aquilo? Ele mesmo
já almoçara em sua casa, mas com naturalidade tal bem própria de sua natureza.
Sentara-se à mesa, servira-se sozinho, conversara com seus pais, irmãos e
cunhados como se sempre pertencera àquele local. Como se almoçar naquela
família fosse algo tão natural como almoçar em sua própria casa.
Como gostaria de ser como Mário Sérgio. Para ele era tudo tão natural,
tudo tão fácil. Trabalhava como um burro de carga e vivia com a cara de quem
levava a vida na flauta. Sempre com aquela cara de gente que está satisfeita
consigo mesma e que já conseguiu tudo o que queria da vida. Como ela era
diferente dele. Não dizem que os opostos se atraem? Ela sabia que estava
atraída por ele. Gostava do seu porte altivo, do seu senso de humor, do seu
sorriso. Mas o que atraíra Mário Sérgio para ela?
Fora ela mesma quem o atraíra.
Mirara nele e tinha decidido que o teria para si. É claro que Rosinha dera uma
forcinha. Uma grande força, na verdade. Quanto a Mário Sérgio, tudo o que
fizera era se deixar abater como uma caça. Estava com ele, sim. Mas não fora
ele que lhe fizera galanteios, quem se mostrara apaixonado. Tão logo soubera
que ela estava interessada nele, decidira que seria seu namorado e aqui
estavam. Será que chegaria a amá-la algum dia?
_ Quanto tempo vai ter que ficar
aí parada pensando se vai almoçar lá em casa ou não? _ Perguntou o rapaz..
_
É Claro que vou. _ Respondeu com um sorriso.
Não podia ficar se escondendo
dentro de uma caverna a vida toda. Que tinha com a família de Mário
Sérgio? Se ele queria que ela fosse,
iria.
_ Boa menina. Essa é a minha
garota. _ Disse ele lhe dando um beijo estalado na face.
Sua garota, ele disse. Então era
a garota de Mário Sérgio? Estava feliz.
Se ele queria que ela almoçasse em sua casa era porque não se envergonhava
dela. E por que iria se envergonhar? Só
porque era a filha da costureira? Que tinha isso? E o que era Mário Sérgio, então? Apenas um pobre órfão que trabalhava de sol a
sol numa mercearia. Mas Mário Sérgio não
tinha nada de pobre órfão. Era altivo, isso sim. Com cara de quem vê o mundo de
cima. Talvez fosse isso que a tivesse atraído. Era isso que faltava nela. Moça
que andava sempre de olhos baixos, como quem pede desculpas ao mundo por
existir.
Abraçou o rapaz. Sentiu o cheiro
do perfume que sabia que ia guardar pro resto de sua vida. Comprara um vidro
com Adalto. Como quem não quer nada pediu para cheirar todos os vidros.
Procurou até que encontrou. O rapaz se espantou quando disse que ia levar. “É
perfume de homem.” Ele explicou. Mas depois pareceu entender tudo. “Presente
para Mário Sérgio?” Ele perguntou. Ela perguntou por que e ele lhe disse que
era aquele que ele usava. Clarice ficou com a cara quente. Fora pega em
flagrante. Tanto fazia. Que tinha Adalto com sua vida?
Cortou a conversa e levou o
perfume. Bem mais caro do que a colônia de alfazema que usava. Não era de se
admirar que Mário Sérgio usasse um perfume caro. Era bem próprio dele. Não usou
o perfume. Não queria que Mário Sérgio soubesse que estava totalmente entregue.
O que ia achar dela? Pingou umas gotas no travesseiro para que dormisse
sentindo o seu cheirinho. Mas não era igual. O cheiro que sentia agora só era
igual no próprio Mário Sérgio. Era como se o perfumista precisasse do próprio
homem para fabricar aquele cheiro. Mas Mário Sérgio não podia ser vendido em
frasco. E era dela. Só dela. E não lhe custara nem um centavo.
O dia amanhecera claro. Uma linda
manhã e domingo. Mário Sérgio combinara de vir buscá-la às onze. Era um dia
especial. O dia em que almoçaria pela primeira vez no casarão. Todos estariam
lá. Quis tomar banho de banheira. Em geral optava pelo chuveiro. Queria que
tudo fosse perfeito. Colocou o vestido novo que a mãe fizera especialmente para
a ocasião. A mãe insistira de que não devia fazer feio diante da família de
Mário Sérgio.
A roupa lhe assentou muito bem. A
mãe gostava do que fazia. Trabalhava com carinho. Sempre dava palpites nas
roupas das freguesas e sempre acertava. Costurava com gosto. Fosse Clarice,
optaria pelo mais fácil. Era uma mulher prática. Mas a mãe sempre inventava
coisas. Às vezes, as freguesas vinham com modelos simples na cabeça. Mas a mãe
sempre inventava. Só para ter mais trabalho, é o que Clarice pensava. Mas a mãe
não parecia ligar. Queria sempre o mais bonito.
Será que fora da mãe que puxara o
gosto pela riqueza? Não. Certamente que não. Ela e a mãe eram muito diferentes.
Não tinhas nada em uma que fizesse que alguém se lembrasse da outra. Ana era
mais parecida.
Chegaram ao casarão. Clarice
estremeceu. O que a esperava? Mário Sérgio pareceu perceber, pois apertou mais
forte a sua mão e sorriu para ela. Clarice sorriu de volta.
Ele abriu o portão, que rangeu.
_ Vamos? _ O rapaz perguntou.
_ É claro. _ Ela consentiu num
fio de voz, mas o que na verdade queria era sair correndo dali. O que achariam
dela? E se ela fizesse algo de errado? E se Mário Sérgio ficasse com vergonha
dela? E se ele não a quisesse mais?
_ O que foi? _ Ele perguntou com
ar preocupado.
_ Nada. Vamos entrar. _ Respondeu
Clarice, já suando frio. E já ia se encaminhando para a porta dos fundos. Mas
Mário Sérgio subiu os degraus da varanda. A porta da sala estava entreaberta.
Nunca havia passado por ela. Pra tudo se tem uma primeira vez.
_ Venha, Clarice. _ Dona Efigênia
a abraçou. _ Como está dona Amália?
_ Está bem e mandou lembranças.
Mais pessoas vieram para sala
para ver a “ilustre” visita. Mário
Sérgio fez as apresentações. A maioria delas desnecessárias porque Clarice
conhecia quase todos. Numa cidade pequena quase todos acabam sempre se
esbarrando, mas Clarice não podia dizer que era amiga daquelas pessoas. Na
verdade, não eram do mesmo círculo de amizade, apenas bons e velhos conhecidos.
Era preciso ter um pouco mais de dinheiro e posição para ser verdadeiramente
amiga dos Magalhães. Como Karina, uma amiga de escola que contara sobre o final
de semana na casa de Olavinho.
Ela nem sabia que eles se
conheciam. Mas já que Karina era de melhor posição, não era de se estranhar que
fosse convidada para um final de semana naquela casa que sempre ouviram falar.
“Ele me beijou.”, contou Karina para ela e suas amigas. Estava falando de
Olavinho. Ele nunca nem ao menos olhara para Clarice, muito abaixo de sua
posição, o mesmo não podia se dizer de Karina. Eles eram iguais, Clarice sabia
disso.
Não sentiu ciúmes, sabia que
Olavinho não era para ela. Não sabia ao certo se gostaria de estar no lugar da
amiga, ou não. Não se sentia bem no mundo de gente esnobe como aquelas. E lá
estava ela, hoje, no meio daquelas pessoas. Será que queria mesmo fazer parte
de tudo aquilo?
O almoço foi servido na sala de
jantar. A mesa era muito grande e estava cheia tanto de gente quanto de comida.
Mário Sérgio sentara ao seu lado. Estavam quase todos ali. Parceria o velho e
bom almoço de domingo na casa dos Magalhães. A família de Olvinho não
compareceu. Seria querer muito ter o comparecimento dos mais bem sucedidos dos
Magalhães para um almoço de apresentação da namoradinha do neto órfão de dona
Efigênia, ainda mais sendo ela a filha da costureira.
E se cometesse alguma gafe? E se
fizesse algo de muito errado na mesa? Será que era isto o que esperavam dela?
_ E pra quando é o casório, Mário
Sérgio? _ Perguntou uma das tias.
Mário Sérgio sorriu.
_ Pra breve, tia. _ respondeu o
moço.
Clarice sentiu o rosto arder.
Nunca haviam falado em casamento. Será que ele estava brincando? Nunca sabia
quando Mário Sérgio estava brincando ou falando a verdade.
_ Então, ta na hora de preparar
os doces. Quero bolo. _ Disse uma das primas.
Todos riram e fizeram mais
brincadeirinhas do tipo. Mário Sérgio levava tudo com muita naturalidade, como
se o casamento fosse algo por eles antes discutido. Não desmentia, não negava.
Como se fosse tudo muito natural.
_ Não acha que Clarice se parece
com a Telma, mamãe?_ Perguntou uma das filhas de dona Efigênia.
_ Um pouquinho, talvez. _ Disse a
senhora. _ Os cabelos são parecidos.
_ Dizem que os homens sempre
procuram mulheres iguais as mães para se casarem._ Continuou a tia de Mário
Sérgio.
_ É verdade. _ Anuiu o marido da
tia . _ Então já sabemos que Clarice é pra casar. Não é, Mário Sérgio?
_ É sim, titio._ Disse o rapaz
sorrindo.
Então ele concordava com o
casamento. Para ele era tudo muito natural. Se falavam que era pra namorar, ele
namorava. Se falavam que era pra casar, ele casava. Será que não tinha vontade
própria? Para Mário Sérgio era tudo muito natural.
O almoço transcorreu sem nenhum
acidente. Todos pareciam muito à vontade. Menos ela.
_ Clarice não é de muitas
palavras. Não é, Mário Sérgio? _ Disse uma das primas.
Clarice não gostava quando
falavam dela como se não estivesse presente. Achava isso uma desfeita. Então
não sabia responder por ela mesma?
_ Falava pelos cotovelos, quando
estava no Grupo Escolar. _ Respondeu o rapaz.
_ Então estudaram juntos?. _
Perguntou uma tia que morava numa cidade um pouco distante.
_ Desde a primeira série.
_ Então se amam desde meninos? _
Interessou-se a tia.
Clarice enrubesceu. O assunto
viera à tona. Como explicar um amor que começava daquele jeito. Ele nunca
dissera que a amava. Era bem certo que não amasse. Ia dizer isto diante de
todos e ela iria passar a maior vergonha de sua vida.
Mário Sérgio não disse que sim
nem que não. Apenas perguntou para Clarice:
_ Não sei. Você me ama desde de
menina, Clarice?
Ficou mudo. Olhou em seus olhos.
Estavam divertidos, como sempre. Tudo para Mário Sérgio era motivo de diversão.
Não levava nada a sério.
Não o amava desde menina. Isso
não era segredo pra ninguém. Tão pouco já dissera para ele que o amava agora.
Mas amava Mário Sérgio. Amava-o como nunca amara ninguém. E não tinha coragem
pra lhe dizer isso.
_ Deixem a menina em paz. _
Acudiu dona Efigênia. _ Isto não é assunto para se discutir numa mesa tão
cheia.
Salva pelo gongo. Devia essa à
dona Efigênia.
O almoço terminou. Tinha vontade
de sair correndo. Não se sentia a vontade. Mas não podia ir embora tão cedo.
Era feio. Quando alguém come na casa dos outros e sai logo em seguida, diz-se
que esta pessoa fez igual cachorro magro. Não queria que a família de Mário
Sérgio pensasse que ela era um cachorro magro.
Quando a primeira visita partiu,
Clarice também partiu. Estava feliz por ter sobrevivido. Ela e Mário Sérgio
caminhavam de mãos dadas. Gostava de caminhar junto dele. Mário Sérgio tinha
porte. Ar de quem é gente importante. Gostava disso nele. Ainda que muitos
pensassem que isto era defeito. Um pouco irritante, às vezes, mas muito
charmoso em Mário Sérgio. Era isto que achava.
_ Não vou entrar, Clarice. _
Disse o rapaz quando chegaram ao portão._Tenho que conferir umas mercadorias
com Chiquinho.
Algumas mulheres se irritavam por
serem preteridas pelo trabalho. Não Clarice. Se
Mário Sérgio se preocupava com o trabalho era bom sinal. Trabalhava
sempre, sem reclamar. Era um homem em que se podia confiar. Era honesto e
trabalhador. Podia fazer corpo mole, mas não fazia. Cada vez mais admirava Mário Sérgio.
_ Está bem. _ Sorriu para ele.
O rapaz sorriu se volta.
_ Um beijinho de despedida? _
Perguntou o rapaz com olhar divertido.
_ Claro. _ Respondeu Clarice
rindo, dando um beijo estalado em sua face, virando para ir embora em seguida.
_ Assim não vale. _ Disse Mário
Sérgio a puxando de volta.
E deu-lhe o beijo cinematográfico
de costume. E nesta hora Clarice se esquecia se o rapaz a amava ou não. Se
estava com ela por falta de opção ou se gostava dela também. E nesta hora não
importava que não o tivesse amado a vida toda ou começado a amá-lo agora. O
importante era que amava Mário Sérgio e se sentia nas nuvens quando o beijava.
_ Tchau, namorada. _ Ele sorriu.
_ Tchau, namorado.
Trancou o portão e ficou vendo o
moço ir embora. Gostava tanto quando ele a chamava assim. Era como se assim
dissesse que ela lhe pertencia.
_ Quem está aí, Duca? _ Perguntou
dona Efigênia, de dentro do quarto.
_ É a Clarice de Mário Sérgio.
Clarice, de Mário Sérgio. Ainda
não se acostumara com aquilo. Até bem pouco tempo era a Clarice, de dona
Amália. Clarice, que antes pertencia a sua mãe, agora pertencia a Mário Sérgio.
Clarice pertencia a Mário Sérgio. E Mário Sérgio, será que pertencia a Clarice?
_ Trouxe as costuras que mamãe
pediu que a senhora provasse.
_ Está bem. Vamos até meu quarto.
Antes quero lhe mostrar uma coisa.
Ao chegarem ao quarto dona
Efigênia abriu um antigo baú e dele retirou um vestido um tanto amarelado.
_ É da mãe de Mário Sérgio. _
Disse a senhora enquanto estendia o vestido sobre o corpo de Clarice.
O cheiro de coisa guardada
invadiu suas narinas. Sentiu um ligeiro mal estar.
_ Bonito, não é? _ A senhora
perguntou.
Clarice admirou o fino bordado. O
tecido era mesmo rico. Era filha de costureira. Sabia quando estava diante de
um tecido caro.
_ É bonito, sim senhora.
_ Não consegue imaginar este
vestido alvo, não é, Clarice?
A moça nada respondeu.
_ Duca sabe clarea-lo. Torna-se como novo. Foi ela quem clareou
o vestido de Nice, minha filha mais velha. Ela se casou com meu vestido. É uma
espécie de tradição em nossa família. Sabia que me casei com o vestido de minha
avó? Foi a mãe de Duca que clareou-lo para mim.
Apenas Duca não tivera quem
clareasse o seu próprio vestido. Não constituíra família. Dona Efigênia era a
única pessoa que tinha no mundo. Já que não tinha parentes. Alguns anos mais nova que dona Efigênia, fora
ainda menina, com sua mãe para o casarão. Parece que dona Efigênia e Duca
faziam parte daquele casarão tanto
quanto aquelas velhas paredes.
Dona Duca não se casara. Depois
da morte da mãe, assumiu o seu lugar. Cuidando dos afazeres, como a mãe sempre
fizera com desvelo. Clarice não conhecera dona Lindalva, a mãe de Dona Duca.
Apenas ouvira a história ser contada. Quando nascera, a senhora há muito tinha
partido deste mundo.
_ Não se lembra da mãe de Mário Sérgio, não é?
_ Muito pouco. Apenas uma vaga
lembrança.
_ É bem verdade. Você era muito
menina quando ela se foi. Era como uma filha para mim. Foi tão cedo. Acho que
meu Augusto morreu de desgosto. Eles se amavam tanto.
_ Eu sinto muito.
_ Vamos deixar as tristezas de
lado. O que acha de se casar com o vestido da mãe de Mário Sérgio? Olhe a foto.
A velha apontou uma fotografia
dos pais de Mário Sérgio, pendurada na parede. Também se lembrava pouco dele. O
homem falecera poucos meses depois da morte da jovem esposa. Ele era o retrato
de Mário Sérgio. Era verdade. A mãe do moço tinha algumas características de Clarice.
A mesma estatura. Os olhos e cabelos negros. Um cabelo liso e comprido. Tal
qual o de Clarice, mas as semelhanças paravam por aí. O vestido era mesmo
lindo. Imaginou-se numa foto igual com Mário Sérgio. Como seria a vida dos dois
casados?
Eles nunca haviam falado em
casamento antes. Até porque se conheciam há muito tempo. Toda a vida dos dois.
Mas começaram a namorar há bem pouco tempo. Era cedo para se falar em
compromissos.
_
O vestido é mesmo bonito. Mas é muito cedo para falarmos disso. Que tal
provarmos as roupas que mamãe mandou? Será que ficaram de seu gosto?
_ Está bem. _ Disse a senhora. _
As roupas que sua mãe põe as mãos sempre saem boas.
Clarice desviara o assunto de
propósito. Não gostava de vestir roupas dos outros. Ainda mais as roupas de um
defunto. Não se sentiria bem com aquilo. Só se casa com um vestido de noiva uma
única vez. Não era justo que se casasse com o vestido de outra pessoa. Ainda
mais sendo sua mãe uma ótima costureira. Isso não tinha o menor cabimento. Se
na família de dona Efigênia era tradição usarem o vestido uma das outras, na
sua família era tradição a mãe confeccionar os vestidos. Fizera os das primas,
o de Ana e Laurinha. Lembra-se de quanto trabalho dera para bordar o vestido de
Ana, a primeira filha a ser casar. Lembrava-se das tias e primas conversando
enquanto faziam o bordado. Não era justo que Clarice não tivesse o seu. Dona
Efigênia que a desculpasse. Em se tratando de tradição, cada família tinha a
sua. Se viesse mesmo a se casar com Mário Sérgio um dia, certamente não seria o
vestido de sua finada mãe. Sabia que o rapaz entenderia. Quem vive de passado é
museu.
Ela e Mário Sérgio passeavam de
mãos dadas. A noite estava fresca. Resolveram tomar um sorvete na praça.
_ Vovó disse que lhe mostrou o
vestido de mamãe._ Ele comentou de repente._ O que achou?
_ Bonito.
_ Quanta animação. Então não quer
usar o vestido de mamãe?
_ E por que eu usaria o vestido
de sua mãe, Mário Sérgio?
_ É tradição na minha família.
_ Isso quer dizer que vamos nos
casar?
_ Só você não sabia disso.
_ Bem, os pedidos de casamento
costumam precederem aos preparativos para o mesmo.
Mário Sérgio deu uma gargalhada.
_ É verdade, Clarice. O tempo
está passando. Não acha que já é hora de me pedir em casamento?
_ Não acredito! Você só pode
estar brincando.
_ Vai pedir ou não vai?
_ Era só o que faltava. _ Disse
Clarice ofendida.
Às vezes Mário Sérgio exagerava
naquela posição de dono do mundo.
Ele riu e a abraçou.
_ Está bem, Clarice. Eu dispenso
o pedido de casamento e me caso com você assim mesmo.
_ E quem disse que quero me casar
com você?
_ Seus olhos estão dizendo.
E a beijou em seguida. Queria
empurrá-lo de lhe dizer meia dúzia de ofensas. Mas quando Mário Sérgio a
beijava, perdia a noção de tudo. Não se animava brigar com ele. Pra que brigar
se beijar Mário Sérgio era tão bom. E ele tinha razão. Queria mesmo se casar
com ele, mas não com o vestido de sua mãe.
Mário Sérgio fez o pedido na
semana seguinte. Não era bem uma festa de noivado. Clarice achava muito feio
festas de noivado. As pessoas comparecem. Fazem uma festa e quando o noivado
acaba, ficasse com cara de pastel diante de todos que compareceram.
Mário Sérgio bem que podia mudar
de ideia. Aceitava as coisas muito facilmente. Aceitara que Clarice estava
apaixonada por ele e começaram a namorar. Aceitara a sugestão de casamento da
família e lá estava ele. Com Dona Efigênia e Duca à tira colo, diante dos pais
e irmãos de Clarice para fazer o pedido. E se alguém lhe viesse com a sugestão
de que Clarice não era moça para ele, que ele poderia arranjar alguém melhor?
Clarice passaria uma vergonha daquelas.
No começo fora apenas uma ideia
quase absurda, mas agora queria mesmo aquele rapaz. Como seria sua vida sem a
presença de Mário Sérgio? Amava aquele homem. Não tinha como mudar. Se ele
aceitava se casar com ela, quem era ela para recusar?
Eles seriam felizes. Lutaria por
isso. Mário Sérgio não haveria de se arrepender de casar com ela.
Clarice pensou que ele estaria
nervoso, como os cunhados estiveram para fazer o pedido das irmãs. Qual nada.
Não suou frio, não estava com as mãos tremendo. Não gaguejou como Tobias, no
dia em que pedira a mão de Laurinha. Apenas perguntou em alto e bom som.
_ Seu Aroldo, me concede a mão de
Clarice em casamento?
Simples assim. O pai disse que sim.
A mãe respirou aliviada. Clarice não ia ficar para tia. Eles trocaram as
alianças e foram jantar.
Na hora de dormir, Clarice passou
a mão na grossa aliança de ouro em sua mão direita. Era como se aquilo tudo
fosse um sonho do qual de repente fosse acordar.
No outro dia teve logo cedo que
ir ao armarinho. A filha de Dona Filó a atendeu.
_ Como vai?
_ Bem e você? Não me parece com a
cara muito boa.
Então percebeu a grossa aliança
no dedo de Clarice.
_ Então está noiva? Conseguiu
laçar Mário Sérgio? Não era para estar com uma cara mais alegre?
_ Estou alegre. O que conta de
novo? _ Perguntou Clarice querendo mudar de assunto.
_ Nada em especial. Ah, hoje vi o
Nelson.
_ Não conheço. Quem é?
_ Não é de sua época. Ele vem
poucas vezes aqui. Quando era jovem, fazia o maior sucesso com as meninas.
_ Inclusive com você, não é
mesmo?
_ Adivinhou. _ Disse a outra
entre risos. _ Eu era a sua mais franca admiradora. O engraçado é que ainda
hoje, todas as vezes em que o vejo, não há um só dia em que não preste atenção.
É muito engraçado. Eu nunca penso nele.
_ Deve ser verdade. Você nunca me
falou dele.
_ Eu já não vejo mais beleza,
ainda que ele não tenha envelhecido em mais de vinte anos.
_ Mais de vinte anos?!
_ Isso mesmo. E ele ainda é bem
mais velho do que eu.
_ Então já deve estar pra lá de
Bagdá.
_ Vou fingir que não ouvi isto,
ta, Clarice? Mas nem em sombra ele parece ter a idade que tem.
_ Ele paquerava você?
_ Que nada. Ele é uma daquelas
pessoas que fizeram parte da minha vida, ainda que eu não tenha feito parte da
vida delas.
_ Entendo.
_ A gente vê que o tempo passou,
que as pessoas envelheceram. Que a beleza que a gente via, só existiu mesmo em
nossas cabeças. Que elas são pessoas comuns, como eu.
_ É verdade.
_ Mas mesmo assim, se agente
passa por eles, vai lembrar. Assim como levamos um choque quando vemos amigos
que costumávamos ver todos os dias e que agora sumiram de nossas vistas.
Não podia fazer aquilo com Mário
Sérgio. As coisas estavam correndo depressa demais. Ele tinha o direito de se
apaixonar de verdade. Era tão decidido em tantas coisas. Era o homem da casa no
casarão. Assumira a mercearia. Fazia o que bem entendia. Não tremera nem diante
de seu pai para fazer o pedido. Por que se deixava carregar para o altar como
um manso cordeirinho? Se procurasse bem, havia de encontrar alguém melhor do
que ela.
Amava Mário Sérgio demais para
vê-lo sofrer um dia. Queria que ele descobrisse o amor assim como ela
descobrira. Como pode se apaixonar por Mário Sérgio daquela maneira? Achava que
isso não era possível. Se ainda tivesse uma quedinha por ele antes. Mas nada!
Nem mesmo o achava simpático. Como poderia amá-lo agora?
Como entrara nesta situação? Por
que de uma hora para outra Mário Sérgio se tornara o centro de sua atenção?
Tinha quase certeza que ele não sentia o mesmo por ela. Os homens sentem
diferente. Precisava acabar com tudo aquilo. Antes que ele acabasse.
De uma hora para outra Mário
Sérgio poderia acordar e ver a grande encrenca na qual estava se metendo. E
Clarice iria morrer de vergonha. Aí é que ficaria para tia mesmo. Todos iriam
caçoar dela pela cidade. Por que não ficara quieta em seu canto? Agora estava tudo perdido. Amanhã mesmo iria
falar com o rapaz. Não podia mais protelar aquela decisão. Quanto mais cedo
fosse, melhor.
Teve que trocar o guarda roupa de
lugar. Teve que desmonta-lo inteiro. Mais essa! Estava cheio de cupim e estava
tombando. Já era tarde e Clarice não estava com ânimo de dormir, ainda que
estivesse cansada.
Estava meio irritada, não sabia
por que. Sabia sim. Toda aquela situação mal resolvida com Mário Sérgio. Estava
até com um pouco de dor de cabeça. O melhor que fazia era dormir.
No outro dia recebeu Mário Sérgio
no portão. Não queria que ninguém ouvisse o que ia fazer. Não pediu conselho a
ninguém. Todos certamente iriam dizer que ela estava louca.
_ Oi, namorada. _ Ele a abraçou. Mas Clarice não teve foras
para corresponder ao abraço. Tinha vontade de chorar. De sair correndo dali.
Não suportava a ideia de perdê-lo.
_ Oi. _ Disse Clarice num fio de
voz.
_ O que você tem? _ Ele perguntou
preocupado.
_ Preciso te falar uma coisa
muito importante.
_ Já sei. _ Ele sorriu aliviado.
_ Você não quer se casar com o vestido da mamãe. Não tem a menor importância,
Clarice. Faça o que você quiser.
_ Não é nada disso, Mário Sérgio.
Não vai haver casamento nenhum. Quero desmanchar com você.
_ O que você está dizendo? _
Perguntou o rapaz espantado.
_ Isso mesmo que você ouviu.
Quero desmanchar.
_ Como assim desmanchar, Clarice?
Nós vamos nos casar, lembra? O que deu em você?
_ Está tudo errado. Não vai dar
certo.
_ Como não vai dar certo? Por que
está pensando isso agora?_ Ele balançava a cabeça como se não conseguisse
entender o que Clarice estava dizendo.
_ Nossa relação não tem futuro.
_ Futuro?_ Ele lhe enviou um olhar
de desprezo que jamais vira. _ Então você pensou bem e decidiu que não sou bom
o suficiente pra você. Um cara que trabalha numa mercearia que não é sua. Que
vive numa casa que não é sua. Alguém que nunca saiu desse lugar.
_ Não é nada disso.
_ Claro que é Clarice. Minha vida
estava muito boa. Não tinha falta de nada. Você sabia que eu era assim. Por que
inventou essa coisa de namorico, então?
_ Eu que inventei, não foi? Foi
eu quem pediu pra namorar com você? O que você quer da vida Mário Sérgio? Tudo
na vida sempre caiu no seu colo. Até eu. Uma moça quer você. A cidade manda
você ficar com ela e você fica. Sua família manda você se casar e você se casa.
Tão simples assim. Você nunca teve que lutar por nada.
_ Então você quer que eu lute por
você?
_ Não precisa, não é? Foi tão
fácil. Você nem teve mesmo que estender sua mão. Estava lá, tão fácil.
_ Não comesse a procurar chifres
em cabeça de cavalo. Não quer, pronto. Está livre.
Livre. Simples assim. Ele se
virou e se foi.
Clarice ficou parada no portão vendo-o
ir embora. Ele nem ao menos olhou para trás. Talvez estivesse mesmo aliviado.
Em nenhuma momento pediu para que ela reconsiderasse. Ela tinha toda razão,
Mário Sérgio não a amava.
Ficou por um longo tempo no
portão. As lágrimas rolavam. Não queria que sua família visse que estava
sofrendo. Estava tudo acabado. Finalmente acordara do sonho. Mário Sérgio
voltava a ser o ex-colega de classe. O rapaz da mercearia.
Como seria agora encará-lo depois
do acontecido. Será que conseguiria esquecê-lo? O que as pessoas iriam dizer
agora?
Que importavam as pessoas? Não
podia levar um inocente para forca por um simples capricho. Mas seria capricho
todo aquele amor que agora sentia por Mário Sérgio? Sabia que não. Mas não
podia sacrificar a felicidade de alguém pela sua própria felicidade.
Também não sabia se poderia ser
feliz amando sem ser amada. Isso era duro para qualquer mulher. Daria tempo ao
tempo. Quem sabe com o tempo conseguiria curar essa ferida. Tudo passa. Essa
dor também haveria de passar.
Um garoto subiu no muro em busca
de uma pipa que voara.
_ Desça daí, menino. _ Clarice
ralhou com ele.
_ Vá caçar uma lavagem de roupa.
_ Gritou o menino pulando na calçada já com a pipa na mão.
Que raiva do guri. Como se não
bastasse o que estava passando. Correu para o portão e disse poucas e boas para
o garoto que já ia longe e pouco ou nada devia ter escutado. Estava agastada,
pronto! Não tinha mais o que fazer. Desconcertara-se. Perdera o rumo!
Assim era Clarice. Em situações
em que perdia o controle, ficava como um peixe fora d’água. Para ela, era
sempre necessário manter sempre bem segura as rédeas do mundo. Se não
conseguia, o que quase sempre acontecia, ficava com um sentimento ruim.
Estava com este sentimento agora.
Descontrola-se por nada! Que tinha um menino destes para lhe deixar tão fora de
controle? E então já não sabia se fizera certo ou errado. Mas já estava feito.
Sentiu cansaço, fome. Teve até
mesmo vontade de chorar. Talvez levasse um tempo para que tudo voltasse ao
controle. Talvez não. Que importava? Precisava relaxar. Não adiantava dar
murros em ponta de faca.
Quantas saudades tinha dele
agora. Rompera porque fora o melhor. Não suportava a ideia de Mário Sérgio se
casar com ela porque já era hora de constituir família. Por pressão da família.
Por pressão da sociedade. Ela mesma não pensava o mesmo? Não quisera ficar pra
tia e escolhera o primeiro que lhe viera à mão: Mário Sérgio. Mas isso fora
antes de se apaixonar por ele.
Por que se deixara levar pela
paixão? Aquilo era coisa de livros, filmes. Não na vida real. A vida real era
feita de pessoas comuns e Mário Sérgio era comum. Isso até ela se apaixonar por
ele. Então ele deixara de se tornar comum para se tornar Mário Sérgio. Mário
Sérgio! Mário Sérgio! Tinha que deixar de pensar nele. Tinha que se concentrar
em outras coisas. Tinha que se concentrar na realidade.
Mário Sérgio não a amava. Esta
era a realidade. Estava tão bem sem ele. Por que fora inventar tudo aquilo? Por
que não escolhera outro? Tantos rapazes que viviam a lhe dar trela e escolhera
justo o que não lhe dava trela nenhuma. As mulheres gostam mesmo de sofrer.
Fizera o certo. Botara um ponto
final naquilo e agora estava tudo acabado. Era melhor assim. Por que colocara a
ideia fixa na cabeça de que iria se casar? Fora a partir daí que tudo começara.
Agora estava acabado. Iria retomar sua vidinha habitual, onde tudo era mais
fácil, mais cômodo.
Só não esperava um dia se deparar
com uma mulher de meia idade no espelho. Sozinha, amarga, sem nada. E Mário
Sérgio? Por onde andaria? Certamente iria se casar logo. Não era do tipo que
esquenta lugar. Logo arranjaria outra para tomar o seu lugar.
O seu lugar. Por acaso tinha
algum lugar na vida do rapaz? Não fora por isso que terminara com ela? Por
achar que não a amava o suficiente? Amar o suficiente? Quando fora que ele lhe
demonstrara algum amor? Simplesmente aceitara o seu cortejo e deixara para a
vida se encarregar do resto. O seu cortejo sim. Não era do tipo que mente para
si mesma. Fora ela quem começara tudo e Mário Sérgio tinha razão.
Quisera se casar e Mário Sérgio
fora o escolhido. E aqui estava ela. Apaixonada. Apaixonada sim e não havia
como negar. O que no princípio parecia muito simples para ela, agora estava um
angu de caroço. Apaixonada por um homem que parecia não ter coração. Não tinha
coração mesmo! Por que não se rebelara? Por que não a rejeitara? Bastou que
Clarice mostrasse algum interesse por ele... Algum interesse? Era falsa
modéstia. Estava com os quatro pneus arriados por ele e todo mundo percebeu.
No entanto, ele podia ter lutado
contra aquilo. Não precisava se casar com ela. Podia muito bem esperar o grande
amor de sua vida. Aquilo chegava doer em seu peito. Ver algum dia Mário Sérgio
de mãos dadas com outra mulher pela rua. Nesse dia sabia que iria sofrer muito.
Ou talvez não! Quem sabe já não teria o esquecido? Ou que talvez amasse outra
pessoa também? Alguém que a amasse como ela amava Mário Sérgio.
Não queria mais saber de amores.
Aquilo era muito complicado. Devia levar uma vida mais simples. Essa coisa de
amor não era para ela. A felicidade está dentro de nós mesmos. Basta sabermos
procurá-la. Mas por um pouco de tempo fora feliz com Mário Sérgio. Chegara a
imaginar uma vida a dois com ele. Uma vida simples, sem complicações. Assim
como era Mário Sérgio. Um homem simples, sem ambições, que achava que tinha o
rei na barriga. Conclusão: era um homem que não precisava de nada, porque já
achava que tinha tudo.
Como gostaria de ser assim. Não
almejar nada na vida e assim viver feliz para sempre. Mas lá estava aquela ambição
lhe roendo sempre. Algo que a puxava para cima e ao mesmo tempo a empurrava
para baixo. Desejo de ser mais e resignação de ser menos. Era como se andasse,
andasse e nunca conseguisse chegar a lugar algum.
De que adiantava ter tantas
ambições se não tinha fibras o suficiente para lutar por algo mais? Queria
tanto e achava que não tinha nada e ao passo que Mário Sérgio não queria quase
nada e achava que tinha tudo. Era ele quem sabia viver.
Nesse momento, tudo que desejava
era caminhar pela praça de mãos dadas com Mário Sérgio e nada mais. Mas nem
isso tinha agora, porque queria sempre mais. Não quisera Mário Sérgio? Ele
estava com ela. Não quisera se casar? Ele se casaria com ela. Mas quisera mais.
Quisera que lhe devotasse amor profundo. Mas o que era profundo na vida do
moço? Quisera mais do que ele poderia lhe dar. Ele lhe oferecera sua mão. Ou
será que simplesmente aceitara segurar a sua? Ele nunca precisava pedir nada
porque as coisas pareciam lhe cair nas mãos, como ela. Não movera uma palha para
conquistar Clarice. Fora ela quem fizera todo o serviço .
Mas que homem precisa conquistar
alguma mulher? É ela quem sinaliza e se deixa conquistar. Mas nem isso Mário
Sérgio precisara fazer. Clarice fora lhe enviada simplesmente como uma
encomenda que chega grátis, sem nenhum aviso prévio pelo correio. A pessoa
recebe e até fica feliz porque é de graça, mas logo perde o interesse porque
não havia pedido nada e não gastara nada. Então deixa pra lá, encostado, com
pena de jogar fora porque algum dia pode até ser que seja útil. Não queria
mesmo este papel na vida de Mario Sérgio. Não fora isso que sempre quisera da
vida.
_ Mamãe disse que você estava
aqui. _ Disse Laurinha entrando no quarto de costura.
_ Estou chuleando algumas roupas
para mamãe.
_ Você parece pálida. Não adianta
ficar se escondendo dentro de casa. Por que vocês desmancharam.
Clarice tinha vergonha. Não
queria que Laurinha soubesse que ela havia se oferecido a Mário Sérgio e que
agora se arrependera por achar que ele não a amava.
_ Não quero falar sobre isso,
Laurinha.
_ O que ele te fez?
As lágrimas encheram os olhos de
Clarice. Virou o rosto para que Laurinha não visse.
_ Nada, Laurinha.
_ Ninguém termina por nada,
Clarice. O que Mário Sérgio fez para magoar você?
_
Mário Sérgio não me magoou, Laurinha.
_ Ele não magoou você?! E então
por que você está chorando desse jeito.
_ Pare com isso, Laurinha. Me
deixe em paz!
_ Tem a ver com a família dele?
Eles falaram alguma coisa pra você?
_ A família dele não me disse
nada, Laurinha! O que eles teriam pra dizer?
_ Uma filha de mamãe casando-se
com alguém que mora no casarão? _ Perguntou Laurinha com certa ironia.
Clarice sentiu um aperto no
coração. Também pensava que a família de Mário Sérgio acharia que ela não era
moça para se casar com ele. Mas eles não falaram nada. Muito pelo contrário.
Foram eles que deram a ideia do casamento. E Mário Sérgio aceitara. Aceitara
sim, mas não era ideia dele. Aceitava tudo, mas não a amava. E se um belo dia
acordasse e visse que cometera o maior erro de sua vida. Como ela ficaria
quando esse dia acontecesse? Antes que o mal cresça, cortasse-lhe a cabeça.
_
Deixe de bobagens, Laurinha. A família de Mário Sérgio não tem nada a
ver com isso.
_ Nunca entendi bem esse namoro
de vocês. Você nunca me disse que gostava de Mário Sérgio.
_ Eu não gostava até pouco tempo.
_ Esta história é muito
esquisita, Clarice. Você e Mário Sérgio nem combinam. Se queria dar o golpe do
baú, mirou errado. Mário Sérgio não tem nada de seu. Aquela mercearia na qual
ele trabalha que nem um burro de carga com o Chiquinho é da avó dele. Seu pai
não lhe deixou nem ao menos uma casa, Clarice. Ele mora de favor na casa da
avó.
_ Você está sendo muito cruel,
Laurinha. Comigo e com Mário Sérgio.
_ Ta certo que ele tem uma certa
posição. Afinal, é um morador do casarão. Mas fora a posição, não sei o que
mais Mário Sérgio tem a oferecer.
_ Você acha que sou uma
interesseira, Laurinha?
_ Interesseira, não. Por certo
uma interesseira não se casaria com Mário Sérgio. Mas sei lá. Você sempre teve o
nariz muito em pé, Clarice. Mário Sérgio
não tem dinheiro, mas tem nome e posição e se você se casar com ele, vai fazer
parte daquela família. É, talvez eu esteja errada. Talvez você combine mesmo
com Mário Sérgio.
_ Não sei de onde sai tanta
asneira, Laurinha. Não pense porque é casada e tem uma filha, que é mais adulta
que eu.
_ Eu não disse que era, mas não
sou nenhuma medrosa.
_ Medrosa, eu?
_ Isso mesmo! Talvez Mário Sérgio
não tenha mesmo feito nada. Quem sabe não é você que não está coragem de enfrentar
a realidade. Está na hora de crescer. Tomar conta de sua própria vida. Encarar
suas responsabilidades.
Laurinha não podia mesmo
entender. Talvez Laurinha não fosse tão criança quanto pensava. Tudo que
dissera tinha muito de verdade. Mas o que fazer? Talvez tivesse mesmo o nariz
empinado. Clarice era muito orgulhosa. Tão orgulhosa que não aceitaria se casar
com um homem que não a amasse. No princípio fora muito fácil decidir que podia
se casar com Mário Sérgio. Tudo isso fora muito simples até que se apaixonara
por ele. E quando o amor chegara, Clarice entendeu que não poderia vivê-lo pela
metade.
_ Tudo bem, Laurinha. _ Ela disse
para a irmã. _ Reconheço sua preocupação. Estou um pouco triste, sim. Toda
ruptura causa algum tipo de mágoa. Mas Mário Sérgio não me fez nada. Apenas
percebi que talvez não tenhamos sido feitos um para o outro. Não vai dar certo
mesmo. É melhor terminar agora do que depois ficar chorando pelo leite
derramado.
_ Você é quem sabe. Só passei
aqui para ver como você estava.
_ Obrigada, Laurinha.
_ Não tem de que. Para que servem
as irmãs? _ Disse Laurinha lhe dando um beijo na face._ Clarice... _ Disse
Laurinha um pouco reticente.
_ O quê? _ Perguntou Clarice.
_ Sendo feito pra você ou não,
vejo que você está mesmo apaixonada pelo Mário Sérgio. Só espero que você não
tenha feito nada que vá se arrepender depois.
_ Eu sei o que estou fazendo,
Laurinha.
_ Está certo. _ Disse a irmã se
retirando.
Clarice pegou de novo nas
costuras, mas não conseguiu reiniciar o trabalho. Será que sabia mesmo o que
estava fazendo? Apaixonado ou não, Mário Sérgio iria se casar co ela. Iria se
casar com o homem que amava. O que mais queria da vida? Sabia a resposta. Queria que ele a amasse
também.
Estava estendendo as roupas no
varal. Estava há quase uma semana sem sair de casa. Tinha medo de cruzar com
Mário Sérgio.
Ele não a procurara. Devia estar
bem feliz da vida. Ela já não tinha mais o que chorar. Ao se abaixar para
retirar uma peça de roupa da bacia deu com Mário Sérgio, que a observava em
silêncio. Não o vira se aproximar.
_ Por que está aqui?_ Perguntou
Clarice, passando instintivamente as mãos sobre os cabelos, mal arrumados num
coque frouxo. Também não estava com uma de suas melhores roupas. Tanto fazia.
Não se importava mais com o que ele pensava sobre sua aparência.
_ Porque acho que devemos
conversar.
_ Tudo que havia pra se conversar
já foi dito.
_ Você falou o que você queria,
eu não.
_ E o que você vai dizer? Que ia
se casar comigo porque eu me ofereci pra você? Que te deixei numa situação na
cidade que o obrigava a tomar uma atitude?
_ Não. Não voltei por causa da
cidade. Voltei porque de repente me peguei imaginando uma criança me abraçando
pelas pernas. Uma criança de cabelos negros como os seus. Imaginei-me chegando
em casa cansado, depois de um dia de trabalho, com você me recebendo com um
sorriso e um abraço apertado. Adoro o seu abraço, Clarice. É um abraço apertado
daquele que se dá apenas em quem se ama. Sinto falta do seu abraço, Clarice.
Sinto a sua falta.
Ele sentia a sua falta. Era tudo.
Ele não a amava. Não queria e não podia aceitar isso.
_ Você pode arranjar outra.
_ Arranjar outra, Clarice?_ Disse
o rapaz exasperado. _ É tudo o que tem a dizer? Como pode brincar assim com os
sentimentos de um homem? Por que você me abandonou, Clarice? Era tudo uma
brincadeira?
Olhou nos olhos de Mário Sérgio e
pela primeira vez notou insegurança. Insegurança? Nunca vira Mário Sérgio
inseguro alguma vez na vida.
_ Achei que você havia se
precipitado. Acho que ainda pode encontrar alguém que você ame de verdade. Não
tem a obrigação de se casar comigo.
_ Quem falou em obrigação,
Clarice? Você vive inventando coisas! Por que não diz logo que cansou da
brincadeira e pronto?
_ Eu nunca estive brincando!
_ Nem eu.
_ Não posso me casar com um homem
que não me ama.
_ E quem disse que não amo você?
_ Você nunca disse.
_ Era preciso dizer?
_ Sempre é preciso.
_ Você nunca disse.
Realmente nunca dissera. E era
preciso? Toda cidade sabia. Fora por isso que o namoro iniciara.
_ E era preciso dizer? Todo mundo
sabia.
_ Você nunca disse. _ Ele
repetiu.
Ele tinha razão. Mas não é a
mulher quem deve dizer primeiro. Nunca! Os homens deviam dizer primeiro. E se
ela dissesse que o amava e ele não lhe dissesse que a amava também? Morreria de
vergonha. Além do mais, nunca percebera nenhum indício de amor da parte de
Mário Sérgio. Se falasse que o amava, podia deixá-lo encabulado. Poderia mesmo
perdê-lo.
_ Como poderia dizer que o amava?
É o homem quem deve dizer que ama primeiro.
_ Quem disse isso?
_ Ora, Mário Sérgio, todos sabem disso. E se eu
dissesse que te amava e você não me dissesse que me amava também?
_ E se eu dissesse que te amava e
você não me dissesse que me amava também? _ Ele repetiu a pergunta.
_ Era um risco que você deveria
correr.
_ Por quê?
_ Porque os homens sempre fazem
isso. São eles que fazem tudo. Eles escolhem as moças, as cortejam, as pedem em
namoro e depois em casamento._ De repente Clarice caiu em si. _ Menos você, não
é, Mário Sérgio? Parece que tudo foi bem mais fácil pra você. Uma moça te
escolheu. A cidade inteira deu força para o namoro. Sua família decidiu o
casamento. Não restou mesmo nada para você fazer.
_ Restou sim.
_ O que restou pra você?
Lágrimas verteram dos olhos de
Clarice. Estava tão envergonhada. Fora ela e somente ela a culpada de toda
aquela situação.
Ele enxugou as lágrimas que
corriam de seu rosto.
_ O principal: amar você.
_Não precisa ficar com pena de
mim. Não precisa dizer que me ama só porque está com pena de mim.
_ Pare de complicar as coisas,
Clarice. Por que acha que não posso amá-la?
_ Foi tudo tão de repente. Nós
nos conhecemos a vida inteira. Nunca houve nenhum interesse, nem na infância,
nem na adolescência. Como poderia estar me amando agora?
_ Da mesma forma como você de
repente se apaixonou por mim. Vamos, Clarice, deixe de ser turrona. Diga logo
que me ama perdidamente, que não pode mais viver sem mim e que está desesperada
para se casar comigo.
Aquilo era bem de Mário Sérgio,
mas ela merecia. Sabia bem quem ele era, mais pedante impossível e mesmo assim
o escolhera para amar. Ele tinha toda razão, fora ela quem começara com tudo
aquilo. Brincou com fogo e acabou queimada. Ela merecia aquilo. Estava mesmo
desesperada para se casar com ele.
_ Mário Sérgio, eu te amo perdidamente e não posso mais viver sem você.
Eu estou desesperada para me casar com você.
_ Boa garota! Fez a lição de casa
direitinho. _ Ele falou enquanto a tomava nos braços.
_ Eu sempre fui melhor na escola
do que você.
Ele riu e a beijou.
_ Amo você, Clarice.
_ Eu também te amo, Mário Sérgio.
Fim
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